segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O “RESET” DA INTERVENÇÃO MUNICIPAL


Tal como referi em post anterior, a consolidação orçamental abrupta das contas públicas imposta pelo resgate financeiro da economia portuguesa tem sido palco fértil para um novo fôlego do pensamento e práticas centralistas em Portugal. O pretenso despesismo municipal funciona como um autêntico cavalo de Tróia para a ofensiva em curso e encontra eco numa opinião pública mal informada sobre o alcance e peso da despesa municipal. Dediquei a esta questão uma reflexão anterior e voltarei proximamente a ela. Há matéria para isso. De facto, a ideia instalada de que o Ministério das Finanças não controla a máquina complexa da despesa pública resulta claramente mais da sofisticação e diversidade institucional do centralismo político e administrativo vigente do que da descentralização e seus eventuais desvarios.
Por agora, concentro-me no tema da reorganização da actividade municipal que surgiu como produto mais ou menos colateral do memorando da Troika. Ele emergiu com alguma ambição e amplitude de dimensões a envolver. Não se tratava apenas de reorganizar o mapa municipal. Por si só, o tema entusiasmou alguns candidatos a decisores de dedo espetado, respirando eficiência e desenhando no território um novo mapa municipal. Mas a ambição ia mais longe a bem da eficiência: alteração do modelo de intervenção e de gestão municipal, com a correspondente alteração do modelo de governação, ou seja executivos monocolores e reforço do poder de fiscalização da Assembleia Municipal.
Hoje, a sensação que transparece é a de que o dedo espetado e decidido dos candidatos a reformadores está mais hesitante. Ao que parece o mapa municipal tem lastro histórico suficiente para poder continuar. As freguesias parecem um alvo mais fácil e mesmo aí a comunicação pública de alguns critérios aqueceu ânimos e o momento é de alguma expectativa sobre os desenvolvimentos futuros que são esperados. Subsiste a dimensão da reorganização interna, adaptação a cortes de efectivos e seguramente a um patamar menos elástico de despesa municipal determinado pelas novas condições de acesso ao crédito.
Há alguns critérios de abordagem que importa defender, sob pena da lógica de eficiência, deixada à solta, produzir soluções potencialmente regressivas do ponto de vista da descentralização em Portugal.
Em primeiro lugar, associar escala física de municípios por agregação a uma simples lógica de eficiência sem qualquer referência aos modelos territoriais em que os Municípios actuam é asneira da mais pura. A dimensão média dos municípios portugueses é uma das mais elevadas do universo da União Europeia. Já alguém imaginou o que seria a inexpugnável máquina administrativa de, por exemplo, um novo município Gaia-Porto? Por isso, qualquer projecto de aumento da escala municipal tem de ser equacionado no quadro de modelos organizacionais que garantam mecanismos claros e operacionais de transparência, informação e participação públicas.
Em segundo lugar, estamos perante uma oportunidade única para atacar frontalmente a chamada delegação ascendente de competências municipais para entidades supra-municipais, associações de municípios, comunidades inter-municipais ou entidades metropolitanas para os casos de Lisboa e Porto. A delegação ascendente obrigatória e não apenas voluntária de algumas das competências municipais (transportes ou rede escolar, como meros exemplos) pode ser equacionada e talvez uma oportunidade como a presente não se repita tão cedo.
Finalmente e por hoje, o por mim designado “reset” da intervenção municipal tem de envolver necessariamente a clarificação de todas as formas institucionais em que a intervenção municipal se multiplicou sobretudo nas duas últimas décadas: empresarialização da actividade municipal (empresas municipais e sociedades de capitais públicos ou mistos; associações de e para o desenvolvimento; fundações; associações de municípios e comunidades inter-municipais; outras fórmulas associativas (as pouco conhecidas régies cooperativas). Este “milagre” da multiplicação das formas municipais limita hoje um princípio fundamental a escrutinar politicamente: a transparência e a coerência da actividade municipal. Uma prática que, numa interpretação bondosa do processo, foi essencialmente inspirada por critérios de flexibilidade administrativa, transformou-se numa panóplia errática de intervenções. Por isso, a falada reorganização da actividade municipal implicará sempre avaliar estas formas interpostas de intervenção municipal não só à luz de mecanismos e soluções de eficiência mas também face ao que os cidadãos esperam de uma Câmara Municipal para o século XXI. Voltaremos ao tema.

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