Tal como referi em post
anterior, a consolidação orçamental abrupta das contas públicas imposta pelo
resgate financeiro da economia portuguesa tem sido palco fértil para um novo fôlego
do pensamento e práticas centralistas em Portugal. O pretenso despesismo municipal
funciona como um autêntico cavalo de Tróia para a ofensiva em curso e encontra
eco numa opinião pública mal informada sobre o alcance e peso da despesa
municipal. Dediquei a esta questão uma reflexão anterior e voltarei proximamente
a ela. Há matéria para isso. De facto, a ideia instalada de que o Ministério
das Finanças não controla a máquina complexa da despesa pública resulta
claramente mais da sofisticação e diversidade institucional do centralismo político
e administrativo vigente do que da descentralização e seus eventuais desvarios.
Por agora, concentro-me no tema da reorganização da
actividade municipal que surgiu como produto mais ou menos colateral do
memorando da Troika. Ele emergiu com alguma ambição e amplitude de dimensões a
envolver. Não se tratava apenas de reorganizar o mapa municipal. Por si só, o
tema entusiasmou alguns candidatos a decisores de dedo espetado, respirando eficiência
e desenhando no território um novo mapa municipal. Mas a ambição ia mais longe
a bem da eficiência: alteração do modelo de intervenção e de gestão municipal,
com a correspondente alteração do modelo de governação, ou seja executivos
monocolores e reforço do poder de fiscalização da Assembleia Municipal.
Hoje, a sensação que transparece é a de que o dedo
espetado e decidido dos candidatos a reformadores está mais hesitante. Ao que
parece o mapa municipal tem lastro histórico suficiente para poder continuar. As
freguesias parecem um alvo mais fácil e mesmo aí a comunicação pública de
alguns critérios aqueceu ânimos e o momento é de alguma expectativa sobre os
desenvolvimentos futuros que são esperados. Subsiste a dimensão da reorganização
interna, adaptação a cortes de efectivos e seguramente a um patamar menos elástico
de despesa municipal determinado pelas novas condições de acesso ao crédito.
Há alguns critérios de abordagem que importa defender, sob
pena da lógica de eficiência, deixada à solta, produzir soluções potencialmente
regressivas do ponto de vista da descentralização em Portugal.
Em primeiro lugar, associar escala física de municípios
por agregação a uma simples lógica de eficiência sem qualquer referência aos
modelos territoriais em que os Municípios actuam é asneira da mais pura. A dimensão
média dos municípios portugueses é uma das mais elevadas do universo da União Europeia.
Já alguém imaginou o que seria a inexpugnável máquina administrativa de, por
exemplo, um novo município Gaia-Porto? Por isso, qualquer projecto de aumento
da escala municipal tem de ser equacionado no quadro de modelos organizacionais
que garantam mecanismos claros e operacionais de transparência, informação e
participação públicas.
Em segundo lugar, estamos perante uma oportunidade única
para atacar frontalmente a chamada delegação ascendente de competências
municipais para entidades supra-municipais, associações de municípios, comunidades
inter-municipais ou entidades metropolitanas para os casos de Lisboa e Porto. A
delegação ascendente obrigatória e não apenas voluntária de algumas das competências
municipais (transportes ou rede escolar, como meros exemplos) pode ser
equacionada e talvez uma oportunidade como a presente não se repita tão cedo.
Finalmente e por hoje, o por mim designado “reset” da
intervenção municipal tem de envolver necessariamente a clarificação de todas
as formas institucionais em que a intervenção municipal se multiplicou
sobretudo nas duas últimas décadas: empresarialização da actividade municipal
(empresas municipais e sociedades de capitais públicos ou mistos; associações
de e para o desenvolvimento; fundações; associações de municípios e comunidades
inter-municipais; outras fórmulas associativas (as pouco conhecidas régies
cooperativas). Este “milagre” da multiplicação das formas municipais limita
hoje um princípio fundamental a escrutinar politicamente: a transparência e a
coerência da actividade municipal. Uma prática que, numa
interpretação bondosa do processo, foi essencialmente inspirada por critérios
de flexibilidade administrativa, transformou-se numa panóplia errática de
intervenções. Por isso, a falada reorganização da actividade municipal implicará
sempre avaliar estas formas interpostas de intervenção municipal não só à luz
de mecanismos e soluções de eficiência mas também face ao que os cidadãos
esperam de uma Câmara Municipal para o século XXI. Voltaremos ao tema.
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