segunda-feira, 25 de julho de 2016

JOGO DE SOMBRAS NA TURQUIA




(Decididamente estou condenado a não visitar a cidade de todos os meus sonhos, Istambul. O mundo por lá não se recomenda e mais do que isso acho que há muito pouca gente que saiba interpretar o que por lá se vai passando)

Tenho nos últimos dias lido muita coisa sobre o que se passa na Turquia e sobretudo sobre as verdadeiras razões que conduziram a um estranhíssimo golpe de estado, que acompanhei em direto na TVE 24 horas num fim-de- semana em Seixas, pois notícia na TV digital portuguese de canal aberto nem vê-las e por isso é necessário recorrer à televisão vizinha, mesmo ali do outro lado do Minho.

Tem-me impressionado a quase completa ausência de jornalismo de investigação internacional. Todos parecem ter encasquetado nas suas cabeças que foi um golpe do próprio Erdogan, interessado em fazer uma purga simultaneamente de kemalistas (secularistas laicos) e de seguidores de Fethullah Güllen. Para minha surpresa, o único texto que contribuiu para gerar uma pista coerente de leitura futura veio de um economista, turco de nacionalidade e hoje radicado nos Estados Unidos há já longo tempo, bastante apreciado neste blogue, Dani Rodrik, sobre cuja obra tenho aprofundado os meus conhecimentos sobre a globalização e os seus rumos.

O seu texto, “Is Fethullah Gϋllen behind Turkey’s coup?” publicado no seu blogue causou-me uma profunda estranheza. É verdade que Rodrik é turco de origem, não passa por ser um apoiante de Erdogan, mas por que raio haveria um economista de tão elevada projeção interessar-se por um assunto de ciência política, focado nos acontecimentos atrás mencionados? A leitura do texto esclareceu pelo menos essa questão. Dani Rodrik é casado com Pinar Dogan, turca, filha do General Çetin Dogan, que na situação de reserva foi em 2010 acusado de conspiração contra o governo, cujo primeiro-ministro era então precisamente Erdogan. A investigação do caso por parte do casal Rodrik havia de esclarecer o caráter encenado dessa acusação, que tudo indica foi na altura uma tentativa dos seguidores de Güllen de afastar do exército kemalistas e secularistas, já que o exército continuou a ser um espaço institucional em que os gϋllenistas mantiveram posições. Daí o conhecimento que o casal Rodrik adquiriu sobre o modus operandi do movimento do líder religioso hoje exilado na Pensilvânia nos EUA.

Da leitura do texto de Rodrik, várias pistas emergem, todas elas bem mais complexas do que as apressadas leituras da imprensa internacional têm vindo a disseminar:

·        O golpe pode ser de facto uma iniciativa consciente do movimento gϋllenista com envolvimento recuado mas ativo do líder religioso;
·        Pode ser o resultado de iniciativas inorgânicas de seguidores de Gϋllen;
·        Pode ser iniciativa de kemalistas e secularistas desgostosos com a islamização do regime;
·        Pode ser uma ardilosa armadilha montada por Erdogan para lhe proporcionar uma solução de força no seio da islamização do regime e assim perigosamente destruir forças de laicidade e secularismo ainda presentes na sociedade turca, com relevo para a educação, justiça e exército, que até pode ter aproveitado insatisfações existentes e preparado uma estratégia de provocação para fazer sair da lura os seus intérpretes.

De facto, é estranho que um golpe desta natureza não tenha sido associado a uma liderança bem definida, o que lhe garante particularidades muito difíceis de interpretar. Rodrik refere que os oficiais que detiveram o general Hulusi Akar, que havia recusado identificar-se com o golpe lhe ofereceram a possibilidade de entrar em contacto direto com Fethullah Gϋllen, o que ainda não está completamente confirmado pelo próprio Akar.

Por conseguinte, o cenário de uma luta intestina intra-forças de islamização que, já agora, aproveita para limpar mais profundamente os resquícios de secularismo na sociedade turca, é provavelmente o que estará a acontecer. A situação da Europa nesta matéria é de uma confrangedora incapacidade, sabendo por exemplo que toda a estratégia dos refugiados está refém de um acordo com uma situação desta complexidade, sobre a qual a Europa não tem nenhum poder de influência. Mais um passo para a irrelevância externa da União, passo que aliás nunca devia ter dado, pois não tinha nem equilíbrio nem asa para o dar.

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