(Decididamente
estou condenado a não visitar a cidade de todos os meus sonhos, Istambul. O mundo por lá não se recomenda e mais do
que isso acho que há muito pouca gente que saiba interpretar o que por lá se
vai passando)
Tenho nos últimos
dias lido muita coisa sobre o que se passa na Turquia e sobretudo sobre as
verdadeiras razões que conduziram a um estranhíssimo golpe de estado, que acompanhei
em direto na TVE 24 horas num fim-de- semana em Seixas, pois notícia na TV
digital portuguese de canal aberto nem vê-las e por isso é necessário recorrer à
televisão vizinha, mesmo ali do outro lado do Minho.
Tem-me impressionado a quase
completa ausência de jornalismo de investigação internacional. Todos parecem ter
encasquetado nas suas cabeças que foi um golpe do próprio Erdogan, interessado
em fazer uma purga simultaneamente de kemalistas (secularistas laicos) e de seguidores
de Fethullah Güllen. Para minha surpresa, o único texto que contribuiu para
gerar uma pista coerente de leitura futura veio de um economista, turco de
nacionalidade e hoje radicado nos Estados Unidos há já longo tempo, bastante
apreciado neste blogue, Dani Rodrik, sobre cuja obra tenho aprofundado os meus
conhecimentos sobre a globalização e os seus rumos.
O seu texto, “Is Fethullah Gϋllen behind Turkey’s coup?” publicado no seu blogue causou-me uma
profunda estranheza. É verdade que Rodrik é turco de origem, não passa por ser
um apoiante de Erdogan, mas por que raio haveria um economista de tão elevada projeção
interessar-se por um assunto de ciência política, focado nos acontecimentos atrás
mencionados? A leitura do texto esclareceu pelo menos essa questão. Dani Rodrik
é casado com Pinar Dogan, turca, filha do General Çetin Dogan, que na situação
de reserva foi em 2010 acusado de conspiração contra o governo, cujo
primeiro-ministro era então precisamente Erdogan. A investigação do caso por parte do casal Rodrik havia de esclarecer o caráter encenado dessa acusação,
que tudo indica foi na altura uma tentativa dos seguidores de Güllen de afastar
do exército kemalistas e secularistas, já que o exército continuou a ser um espaço
institucional em que os gϋllenistas mantiveram posições. Daí o conhecimento que
o casal Rodrik adquiriu sobre o modus operandi
do movimento do líder religioso hoje exilado na Pensilvânia nos EUA.
Da leitura do texto de
Rodrik, várias pistas emergem, todas elas bem mais complexas do que as
apressadas leituras da imprensa internacional têm vindo a disseminar:
·
O golpe pode ser de facto uma iniciativa
consciente do movimento gϋllenista com envolvimento recuado mas ativo do líder
religioso;
·
Pode ser o resultado de iniciativas inorgânicas
de seguidores de Gϋllen;
·
Pode ser iniciativa de kemalistas e
secularistas desgostosos com a islamização do regime;
·
Pode ser uma ardilosa armadilha montada por
Erdogan para lhe proporcionar uma solução de força no seio da islamização do
regime e assim perigosamente destruir forças de laicidade e secularismo ainda presentes
na sociedade turca, com relevo para a educação, justiça e exército, que até
pode ter aproveitado insatisfações existentes e preparado uma estratégia de
provocação para fazer sair da lura os seus intérpretes.
De facto, é estranho que
um golpe desta natureza não tenha sido associado a uma liderança bem definida,
o que lhe garante particularidades muito difíceis de interpretar. Rodrik refere
que os oficiais que detiveram o general Hulusi Akar, que havia recusado identificar-se
com o golpe lhe ofereceram a possibilidade de entrar em contacto direto com Fethullah
Gϋllen, o que ainda não está completamente confirmado pelo próprio Akar.
Por conseguinte, o cenário
de uma luta intestina intra-forças de islamização que, já agora, aproveita para
limpar mais profundamente os resquícios de secularismo na sociedade turca, é
provavelmente o que estará a acontecer. A situação da Europa nesta matéria é de
uma confrangedora incapacidade, sabendo por exemplo que toda a estratégia dos
refugiados está refém de um acordo com uma situação desta complexidade, sobre a
qual a Europa não tem nenhum poder de influência. Mais um passo para a irrelevância
externa da União, passo que aliás nunca devia ter dado, pois não tinha nem equilíbrio
nem asa para o dar.
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