terça-feira, 26 de julho de 2016

O CALVÁRIO DOS DEMOCRATAS

(A espertalhona Debbie Schultz)



(A ameaça que paira sobre o mundo vinda da Trumpomania é bem mais real do que as nossas boas consciências alguma vez pressupuseram. Por isso, a guerra civil com que começou a convenção democrática em Filadélfia merece a nossa melhor e mais preocupada atenção.)

Ninguém imaginaria que o primarismo das tropelias de Donald Trump se transformasse em real ameaça, até porque o nosso conhecimento da sociedade americana é truncado, incompleto, longínquo e, por isso, incapaz de compreender as nuances mais profundas e desconcertantes do seu pulsar social. Mas se pensarmos que no Partido Republicano alguém fez o pão que o diabo amassou (ver link em artigo no Vox sobre esta matéria) e que a explosão do apoio a Trump tem antecedentes não resolvidos talvez devêssemos ter prestado mais atenção ao caso. Ninguém imaginaria, entretanto, que o rol de candidatos no Partido Republicano fosse tão inconsistente e que desaparecessem rapidamente reduzidos a cinza, abrindo o caminho à nomeação de Trump. Está feito e tudo indica que a nomeação de Trump poderá gerar uma ampla mobilização dos que já estão por tudo, entregues ao desespero de ter sido abandonados pela ação política.

Ora, pelos lados dos democratas, muita gente (neste caso estive fora desse coro) imaginou que Hillary tivesse uma passadeira vermelha a recebê-la. Aí essa pressuposição revelava-se arriscada, com forte propensão para estar errada, como aliás aconteceu. Bernie Sanders tocou forte no descontentamento popular face aos poderosos do setor financeiro e à desigualdade crescente, sobretudo aqueles mais recetivos a um discurso consistente de rebelião de interesses e menos tocáveis por discursos apocalípticos de protecionismo e de rejeição dos que chegam de fora. Hillary é certamente uma política consistente, tem maturidade suficiente para lograr um amplo apoio nas mulheres americanas mais liberais, mas as suas ligações com o sistema financeiro sempre foram mais enevoadas do que os apoiantes de Sanders estão dispostos a aceitar.

Mas ganha a dianteira, imaginava-se que, sobretudo face ao crescimento da ameaça Trump, colocada em alerta vermelho, a Convenção de Filadélfia fosse uma consagração de unidade em torno da candidata Hillary. Ora, eis que se observa que as primárias deixaram marcas e que uma espertalhona democrata, Debbie Schultz, Chairwoman of the Democratic National Committee, foi apanhada com a boca na botija a tentar boicotar a candidatura de Sanders, interferindo objetivamente nos resultados das primárias. Bernie bem se esforçou no seu discurso inaugural para ultrapassar o incidente e contribuir para a união das hostes e até recebeu um pedido de desculpas do próprio partido, de cujo lugar a espertalhona Schultz foi obrigada a demitir-se.

Paul Waldman no Washington Post interpreta a guerra aberta que eclodiu na Convenção de Filadélfia não como uma fissura intestina dos Democratas, mas antes como um ataque externo que resulta da ação de uma esquerda americana que verdadeiramente não pertence às fileiras dos democratas. Reconhece Waldman que é estranho acontecer a rotura de Filadélfia quando emerge a ameaça de um candidato que ameaça deportar 11 milhões de pessoas, suspender a entrada de muçulmanos nos EUA e fazer recuar os direitos cívicos de minorias como a da população gay e o que está em causa é a eleição de uma outra candidata que quer aumentar o salário mínimo em 15 dólares/hora, expandir a segurança social e assegurar os cuidados de saúde universais às crianças. É de facto estranho assistir a esta loucura perante ameaça tão efetiva. Mas convém não mexer nas pituitárias políticas destas esquerdas e a espertalhona Debbie Schultz não compreendeu que pisar essa linha (não a passadeira) vermelha podia ser fatal.

Salvo melhor observação a fazer nos próximos tempos, o que parece poder concluir-se é que a radicalização da sociedade americana penetrou as bases sociais tradicionais de republicanos e democratas estilhaçando-as violentamente, pelo que esse confronto deixou de poder fazer-se nos moldes anteriores. Mas que talvez Trump não tivesse imaginado combustível tão atiçado para o seu primarismo é cada vez mais uma evidência.

Mas que raio de tempo para envelhecer.

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