(A espertalhona Debbie Schultz)
(A ameaça que
paira sobre o mundo vinda da Trumpomania é bem mais real do que as nossas boas
consciências alguma vez pressupuseram. Por isso, a guerra civil com que começou a convenção democrática em
Filadélfia merece a nossa melhor e mais preocupada atenção.)
Ninguém imaginaria que o
primarismo das tropelias de Donald Trump se transformasse em real ameaça, até
porque o nosso conhecimento da sociedade americana é truncado, incompleto,
longínquo e, por isso, incapaz de compreender as nuances mais profundas e desconcertantes do seu pulsar social. Mas
se pensarmos que no Partido Republicano alguém fez o pão que o diabo amassou
(ver link em artigo no Vox sobre esta matéria) e que a explosão do apoio a
Trump tem antecedentes não resolvidos talvez devêssemos ter prestado mais
atenção ao caso. Ninguém imaginaria, entretanto, que o rol de candidatos no
Partido Republicano fosse tão inconsistente e que desaparecessem rapidamente
reduzidos a cinza, abrindo o caminho à nomeação de Trump. Está feito e tudo
indica que a nomeação de Trump poderá gerar uma ampla mobilização dos que já
estão por tudo, entregues ao desespero de ter sido abandonados pela ação
política.
Ora, pelos lados dos
democratas, muita gente (neste caso estive fora desse coro) imaginou que
Hillary tivesse uma passadeira vermelha a recebê-la. Aí essa pressuposição
revelava-se arriscada, com forte propensão para estar errada, como aliás
aconteceu. Bernie Sanders tocou forte no descontentamento popular face aos
poderosos do setor financeiro e à desigualdade crescente, sobretudo aqueles
mais recetivos a um discurso consistente de rebelião de interesses e menos
tocáveis por discursos apocalípticos de protecionismo e de rejeição dos que
chegam de fora. Hillary é certamente uma política consistente, tem maturidade
suficiente para lograr um amplo apoio nas mulheres americanas mais liberais,
mas as suas ligações com o sistema financeiro sempre foram mais enevoadas do
que os apoiantes de Sanders estão dispostos a aceitar.
Mas ganha a dianteira,
imaginava-se que, sobretudo face ao crescimento da ameaça Trump, colocada em
alerta vermelho, a Convenção de Filadélfia fosse uma consagração de unidade em
torno da candidata Hillary. Ora, eis que se observa que as primárias deixaram
marcas e que uma espertalhona democrata, Debbie Schultz, Chairwoman of the
Democratic National Committee, foi apanhada com a boca na botija a tentar
boicotar a candidatura de Sanders, interferindo objetivamente nos resultados
das primárias. Bernie bem se esforçou no seu discurso inaugural para
ultrapassar o incidente e contribuir para a união das hostes e até recebeu um
pedido de desculpas do próprio partido, de cujo lugar a espertalhona Schultz
foi obrigada a demitir-se.
Paul Waldman no Washington Post interpreta a guerra aberta que eclodiu na Convenção de
Filadélfia não como uma fissura intestina dos Democratas, mas antes como um
ataque externo que resulta da ação de uma esquerda americana que
verdadeiramente não pertence às fileiras dos democratas. Reconhece Waldman que
é estranho acontecer a rotura de Filadélfia quando emerge a ameaça de um
candidato que ameaça deportar 11 milhões de pessoas, suspender a entrada de
muçulmanos nos EUA e fazer recuar os direitos cívicos de minorias como a da
população gay e o que está em causa é a eleição de uma outra candidata que quer
aumentar o salário mínimo em 15 dólares/hora, expandir a segurança social e
assegurar os cuidados de saúde universais às crianças. É de facto estranho
assistir a esta loucura perante ameaça tão efetiva. Mas convém não mexer nas
pituitárias políticas destas esquerdas e a espertalhona Debbie Schultz não
compreendeu que pisar essa linha (não a passadeira) vermelha podia ser fatal.
Salvo melhor observação
a fazer nos próximos tempos, o que parece poder concluir-se é que a
radicalização da sociedade americana penetrou as bases sociais tradicionais de
republicanos e democratas estilhaçando-as violentamente, pelo que esse
confronto deixou de poder fazer-se nos moldes anteriores. Mas que talvez Trump
não tivesse imaginado combustível tão atiçado para o seu primarismo é cada vez
mais uma evidência.
Mas que raio de tempo
para envelhecer.
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