sexta-feira, 22 de julho de 2016

O DEBATE QUE PODERIA TER SIDO …




(O Quadratura do Círculo tem-se arrastado ultimamente e perdido gás. Ontem houve um esboço de debate relevante, travado entre, quem poderia mais ser, Pacheco Pereira e Lobo Xavier, mas infelizmente não passou disso.)

O Quadratura do Círculo tem refletido o tom estival que já nos envolve. A modorra que nos começa a tocar tem-se transmitido ao programa, que tem perdido por isso fogo de debate. Retirando alguma informação privilegiada que Jorge Coelho e Lobo Xavier transportam para o programa (ontem isso foi claro a propósito das negociações em curso em torno da Caixa) e algumas diabruras recentes de Lobo Xavier em relação aos partidos hoje na oposição (ontem foi demolidora a sua crítica da posição do PSD face ao sistema financeiro), poucas novidades de debate relevante têm emergido.

Ontem, porém, houve um esboço de algo de muito promissor, com Jorge Coelho a ver a bola passar nessa matéria. Pacheco Pereira considerou que a estagnação económica da Europa constitui um resultado das políticas de gestão macroeconómica que têm sido aplicadas, sob o que agora se chama a influência do ordoliberalismo alemão (promessa minha de voltar ao assunto, pois há dados novos sobre esta matéria). Lobo Xavier replicou dizendo que a posição de Pacheco Pereira não era correta, pois a estagnação económica da Europa seria o resultado de outro tipo de fatores (foi parco e redutor na sua explicitação pois se limitou à competitividade e à globalização) e a política de gestão macroeconómica quando muito prolongou e exacerbou essas dificuldades. Pacheco Pereira invocou em sua defesa o pensamento de alguns Nobel de Economia (Krugman, Stiglitz, …), o que não demoveu Lobo Xavier da sua correção.

Eu sei que é difícil transpor debates desta natureza para a opinião pública, mesmo tendo em conta que o público do Quadratura não é propriamente incapaz de pensar sobre coisas sérias. Mas também sei que por vezes se discutem questões no programa, como as da complexidade do sistema financeiro, que essas sim escapam ao vulgar dos mortais e não é por isso que o programa se abstém de as debater. Ora aquilo que ontem foi simplesmente aflorado, e foi apelativo o ar enfadado com que Pacheco Pereira ouvia a crítica de Lobo Xavier, é da matéria da maior relevância e por mais estranho que pareça tem que ver com a difícil situação em que nos encontramos.

Na literatura económica de hoje, o conceito mais elaborado para interpretar a estagnação económica das economias avançadas é o conceito de estagnação secular proposto por Lawrence Summers, como ontem aqui neste blogue uma vez mais procurei demonstrar. Pode discutir-se se Summers foi muito feliz ao batizar o fenómeno com um termo que já tinha sido cunhado por Alvin Hansen na década de 30. Mas não tenho qualquer dúvida que é o conceito mais elaborado de que os economistas hoje dispõem para interpretar o seu tempo de estagnação, em contexto de recuperação agónica de um forte abalo gerado pelas travessias do sistema financeiro.

Mas há um problema. O conceito de estagnação secular foi cunhado a partir da economia americana e tem sido pouco trabalhado no âmbito da economia europeia. A situação desta última é algo complexa pois combina estagnação económica com riscos de deflação e essa combinação explosiva tem determinado que seja por via da política monetária que Draghi tem procurado arredar a hipótese da deflação. Neste contexto, a gestão “ordoliberal” da estagnação europeia, vendendo a tese de que a confiança do investimento não pode ser restaurada em ambiente de indisciplina de contas públicas, pode ser responsável pelo agravamento da estagnação. É conhecido que as por mim já referidas (ver post anterior) piruetas heterodoxas do BCE têm demorado muito tempo em chegar à economia real, conseguindo tão só suster as dificuldades de acesso ao financiamento dos mais endividados (Portugal incluído). Draghi já se queixou do mal que consiste em não ter uma política de impulso fiscal concertado na União. Mas não tem de se queixar. Ele e outros amigos estiveram ao lado dos que prescreveram para o BCE um mandato que se limita à estabilidade nominal dos preços (o que nem isso tem conseguido, dado o afastamento do referencial da inflação a 2%). Estiveram ao lado dos que impuseram a ortodoxia monetária para gerir a zona euro. E, durante largo tempo, acreditaram piamente na fórmula “quantitative easing + reformas estruturais” (as tais que ninguém define) como mezinha para o problema. Hoje é sabido que não chega e daí as piruetas para esconder o óbvio.

Por isso, Pacheco Pereira não está fora da razão ainda que seja tema que lhe escape. Mas Lobo Xavier também não é desbocado quando acentua que a política de gestão macroeconómica de inspiração ordoliberal não explica de per si, totalmente, a estagnação económica. Mas essa sua explicação teria que ser mais profunda do que deixou antever na sua intervenção de ontem. Há problemas estruturais da própria arquitetura do Euro que podem explicar em parte a estagnação económica, pois não estão a funcionar os mecanismos de redistribuição e reequilíbrio que deveriam estar a funcionar, reflacionando a norte para que o sul possa abandonar progressivamente a desvalorização interna a que foi submetido pela imposição de Bruxelas. Além disso, a desarmonização fiscal na zona euro, cada vez mais agravada pela necessidade de gerar receita fiscal a sul e com casos flagrantes de concorrência fiscal no interior da União, tende a precipitar em termos médios menor crescimento económico. E depois há a total incapacidade da Comissão Europeia em utilizar a política de investigação e desenvolvimento tecnológico como sucedâneo remoto de uma política industrial que visasse aumentar os níveis de competitividade da indústria europeia. E depois ainda houve a precipitadíssima política comercial externa da União que ajudou, sabe-se lá por que motivos, a precipitar a desindustrialização precoce. E há ainda o fenómeno estrutural do envelhecimento e a perda de produto potencial da União.

Em resumo o debate que poderia ter sido e não foi, é rico, tem substância e interessa a Portugal incapaz de pela sua pequena dimensão resolver as insuficiências estruturais que partilha com a Europa. Não tenho dúvidas que a política de gestão macroeconómica será denunciada na história económica como um erro, esse sim criminoso. O ordoliberalismo alemão serve a proeminência alemã à custa de outros países europeus, numa espécie de reedição das políticas de “beggar-my-neighbour” e acentua o descalabro global europeu. Mas certamente que seríamos tontos em pensar que é suficiente para explicar a perda europeia. O que não significa, como é óbvio, levantar a guarda nesse debate.

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