segunda-feira, 18 de julho de 2016

O MISTÉRIO IRLANDÊS




(Os economistas e a informação económica já viveram dias melhores em matéria de credibilidade já ninguém o duvida, e a prova está em que muita gente não acredita que a economia irlandesa tenha crescido em 2015 ao ritmo do que é revelado pela publicação do INE lá do sítio)


A primeira reação é obviamente de espanto e incredulidade. De acordo com os dados publicados pelo INE irlandês, a economia irlandesa terá crescido, com medida através do PIB, em 2015 face a 2014, a preços constantes, a uma taxa de 26,3%. Apetece dizer “foi você que disse 26,3% a preços constantes de 2014?”. Sabe-se dos manuais de introdução à macroeconomia que a Irlanda é aquele país com que todos sonham para explicar aos seus alunos as diferenças entre PIB e PNB, o primeiro medido em termos da atividade económica que é produzida em território irlandês não interessando a nacionalidade de quem produz e o segundo utilizando o critério da nacionalidade, com produção em território irlandês e fora dele. Ora, neste caso e mantendo o critério dos preços constantes, o crescimento económico é maior quando medido pelo PIB do que quando medido pelo PNB. De qualquer modo, crescimentos anuais a dois dígitos soam já a uma “douradolândia” qualquer. Por isso, no quadro da anteriormente referida desconfiança, há quem se interrogue sobre as razões de número tão estranho, desconhecendo aqui se temos de inventar uma nova forma de apresentação de dados económicos. Explico-me. Há boletins meteorológicos que apresentam a temperatura observada ou prevista, mas também apresentam a temperatura que vai ser percecionada. Ou seja, a temperatura sentida é por vezes diferente da que os termómetros revelam. Também aqui, se calhar, deveríamos apresentar a taxa de crescimento económico irlandesa e, simultaneamente, a taxa percecionável pelos irlandeses nesse mesmo período.

De facto, o número gera tanta incredulidade que há quem se ponha a duvidar e a procurar as razões de tal “anomalia”.

Um aparentemente desconhecido Bill Craighead, no seu Twenty-Cent Paradigms, a que cheguei pela atividade insana e imaginativa de Mark Thoma no Economist’s View, normalizou os principais agregados macroeconómicos irlandeses para o ano de 2010 (2010=100) e procurou indagar o que é que pode ter provocado tamanha explosão (ver gráfico abaixo). De acordo com a normalização de Craighead, percebe-se que são as variáveis do investimento e das exportações líquidas que respondem pelo salto significativo observado em 2015. Ambas devem estar ligadas a comportamentos de firmas multinacionais de grande expressão e dimensão, que, como se sabe, na sequência da generosa política fiscal de tributação de IRC que a Irlanda pratica para nosso espanto e inveja natural numa União tão sequiosa de normalização, impedem qualquer extrapolação comparativa com outros países europeus, incluindo este jardim à beira mar plantado. 


Seamus Coffey no prestigiado Irish Economy em que Kevin O’Rourke também escreve desenvolve também análises mais finas para compreender tão fantástico número. Entre outras finuras, Coffey refere que algumas multinacionais poderão ter feito regressar ao território irlandês alguns ativos intangíveis, aumentando simultaneamente o valor acrescentado bruto irlandês e reduzido os pagamentos de royalties ao exterior. Tal aumento de valor acrescentado pode não ter uma relação firme com o crescimento de salários e lucros e os números dos primeiros para os setores não agrícolas revelam um crescimento apenas de 5,6%. Para além disso, o crescimento de 121% observado nas despesas de I&D parece ser equivalente mais a compras de ativos intangíveis do que propriamente a um aumento regular de despesas de I&D. Ou seja, há questões de registo contabilístico que ofuscam os 26% de crescimento do PIB. Tudo leva a crer que o comportamento do stock de capital irlandês revelou em 2015 particularidades e isso terá sido refletido no valor do investimento que não é mais do que a variação desse stock. Por isso, Coffey propõe-nos que olhemos para o Rendimento Nacional que permite ter em conta as depreciações dos ativos de capital e os rendimentos líquidos do exterior. A taxa de crescimento dessa variável anda pelos 6,5%, o que é sugerida por Coffey como algo de mais realista e menos suscetível a pormenores difíceis de comunicar na informação económica. Ou seja, usando a metáfora meteorológica, quanto ao crescimento económico irlandês “it feels like 6,5% rather than 26%”.

Mas será mesmo assim? O meu ponto consiste apenas em mostrar que a quantificação do crescimento económico ainda transporá consigo alguns insondáveis mistérios, não do ponto de vista técnico, mas principalmente na perspetiva da perspetiva da comunicação democrática e transparente da informação económica. Imaginem-se só os problemas acrescidos que estarão ocultos no já célebre cálculo do défice estrutural, que recorre não ao produto observado mas ao produto potencial, uma grandeza construída por técnicas de modelização. Foi você que pediu um défice estrutural de x%?

Outros como Matthew Klein no Alphaville do Financial Times seguem uma outra via e relativizam o tal resultado inserindo-o no passado a recuperar. Um simples exemplo ilustra essa abordagem: a curva do consumo real médio por família está ainda longe do seu pico em 2008 (ver gráfico abaixo).

Uma última e decisiva consequência: a macroeconomia de um paraíso fiscal tem que se lhe diga e não pode ser extrapolada com a leviandade com que muito do jornalismo económico o faz (oh, oh, why can’t we have a better press corps!). Como eu percebo cada vez melhor o desabafo de Brad DeLong!

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