(José Pacheco
Pereira tem dito repetidas vezes que pretendem banir o keynesianismo segundo
uma linha de afunilamento de alternativas que é necessário contrariar politicamente.
A questão é relevante mas
tem nuances que tornam difícil a sua simples aplicação a Portugal, embora o
debate seja para nós relevante por questões que vale a pena discutir)
A crítica
proferida por José Pacheco Pereira (JPP), ainda ontem reiterada na sua longa conversa
com José Alberto Carvalho na TVi e depois na TVi 24, tem um enquadramento bem definido.
Trata-se de denunciar a pressão realizada pelas autoridades europeias e pelo pensamento
económico e político alicerçado na matriz do PPE no sentido de rejeitar alternativas
políticas de governação que questionem e ponham em causa a ideia central de que
a confiança dos mercados exige austeridade e consolidação a todo o preço das
contas públicas. Segundo JPP, o keynesianismo estaria banido por tais orientações,
produzindo tal rejeição um afunilamento perigoso das opções democráticas de alocação
de recursos nos países soberanos.
A questão deve
colocar-se, existe conceptualmente, mas tem mais nuances do que a formulação
que JPP lhe atribui. E, sublinhe-se, não se trata de reavivar em abstrato as
velhas querelas do keynesianismo contra os que precocemente lhe passaram a
certidão de óbito para os tempos posteriores à estagflação dos fins dos anos 70.
O debate é mais rico se o inscrevemos no tempo atual das interrogações
contemporâneas e é nesse sentido que gostaria de o revisitar neste espaço de
opinião.
O contexto macroeconómico
e social das principais economias avançadas é marcado pelos efeitos de uma
estagnação económica que já não pode ser considerada transitória. É claro que me
podem falar do mistério dos 26% de crescimento a preços constantes da Irlanda
em 2015. Já tratei essa questão e o número é excecional e tem de ser
compreendido no quadro do modelo de paraíso fiscal que a Irlanda representa face
a empresas multinacionais, que aí depositam os seus ativos imateriais determinando
saltos inesperados na formação de capital, poupando uma pipa de euros em relação
ao que teriam de pagar, por exemplo, nos EUA. Retirando essa insinuante exceção,
o modelo de estagnação secular proposto por Lawrence Summers para compreender o
mundo atual das economias avançadas, do Norte Atlântico como refere a moderna historiografia
moderna. Sem modéstia, talvez tenha sido dos primeiros a divulgar o tema e à
luz de alguns textos que tenho dedicado ao conceito, compreende-se a estagnação
secular é uma forma de dizer que o mundo atravessa uma crise global de procura.
Ora, se a tese estiver certa, e ela foi formulada há dois anos e a realidade desde
então tem-se encarregado de não a desmentir, isso significa que os papagaios das
reformas estruturais (do lado da oferta) poderão continuar a sua cacofonia que não
é por aí que a coisa se resolve. Nos últimos tempos, a política monetária tem
optado por indecorosas piruetas para tentar ultrapassar o problema, mas nada
que se veja tem sido alcançado.
Ora é neste contexto
atual que vale a pena falar de keynesianismo. Uma crise global de procura, agravada
por fenómenos estruturais (esses sim, estruturais) como a demografia, a
desigualdade e o baixíssimo preço relativo do capital que exacerba o défice de investimento
face à massa de poupança disponível (o já célebre savings glut), só pode ser combatida por uma política fiscal
expansionista, hoje e já. Como é óbvio, essa recomendação aplica-se em primeira
linha a países com capacidade de endividamento. Aparentemente, isso afasta Portugal
desse caminho, mas é possível demonstrar que, embora indiretamente, a solução
portuguesa beneficiaria com a possibilidade dessas economias enveredarem por
tal caminho.
Ora, o anti-keynesianismo
primário reinante na governação vai ao ponto de se escudar numa série de
argumentos que escondem o óbvio. Primeiro, escondem que com taxas de juro tão
baixas é possível demonstrar que o endividamento de hoje e o crescimento que a
maior despesa fiscal proporciona tendem a compensar o pagamento de impostos
amanhã, permitindo até fazer descer a percentagem da dívida pública no PIB. A
academia aberta ao pensamento livre saudou o modelo de Summers e DeLong que o
demonstra com o rigor formal necessário. Mas o debate não se abre porque há
rejeição primária dessas ideias. Inventam para isso o fantasma de que as taxas
de juro dispararão após esse impulso fiscal. A evidência disponível sobre as
taxas de juro a longo prazo diz o contrário. Os famigerados mercados não
antecipam qualquer subida nos valores de longo prazo. E o último argumento é caricato:
o impulso fiscal tenderia a aliviar a pressão sobre os governos para levarem a
cabo reformas estruturais. Como Brad DeLong os despacha e bem, não há qualquer
evidência sólida de que em depressão é mais simples gerar reformas estruturais.
E acima de tudo reformas estruturais em abstrato são um dos maiores embustes
ideológicos que alguma vez foi ensaiado.
Este é o contexto em que
o keynesianismo está a ser banido por motivos estritamente ideológicos e sem
evidência fundamentada a suportar tal rejeição. O debate não tem transposição automática
para Portugal. E compreende-se porquê. A margem de manobra para o impulso
fiscal é pequena se a Europa não ajudar. Mas se tal rejeição for vencida no contexto
das economias avançadas, ou seja, se a estagnação estrutural for combatida seriamente
isso será sempre positivo para uma economia como a nossa, pequena e aberta e incapaz
de ter um salto para uma nova trajetória de crescimento do rendimento per capita. E o primeiro passo para o
conseguir é ao nível da União como um todo derrotar esse pensamento. É tema para
outra conversa mas não será por acaso que os grandes defensores do conceito de
estagnação estrutural estão do outro lado do Atlântico. Para desgraça e tragédia
nossas.
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