sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

BREVE PASSAGEM PELAS CIÊNCIAS COGNITIVAS

(Gérard DuBois para a New Yorker)


(Em tempos em que o próprio conceito de facto parece estar em crise, com os não factos a transformarem-se em pretensa evidência, as ciências cognitivas oferecem-nos uma preocupante ajuda, pelo menos do ponto de vista do estado da arte…)

Não só a partir da chegada da administração Trump ao poder, mas com exemplos distribuídos por outras paragens, o mundo que alguns designaram da pós-verdade ou da ficção lida como se fizesse registo de evidência e verdade está por aí, aparentemente impune e, nos casos mais gravosos, democraticamente validado em urnas. O conceito de mentira foi relativizado. E, pior do que isso, o facto em si não convence, prevalecendo frequentemente o produto de narrativas construídas, sem evidência.

Alguns apontam o dedo às redes sociais, o que me parece uma saída demasiado fácil. As redes sociais não são elas próprias uma explicação para a pós-verdade, pois carecem de explicação fundamentada para a sua reprodução alargada.

Pois, bem antes da administração Trump se recriar no mundo da pós-verdade e da mais despudorada negação de evidências, as ciências cognitivas, designadamente a psicologia, deram-nos pistas relevantes para compreender o que se passa. Embora não seja líquido que os cultivadores da pós-verdade se apoiem no produto dessa investigação, a verdade é que ignorar esses resultados pode ser muito penalizador.

Elizabete Kolbert, uma das cronistas mais brilhantes da New Yorker, com talento para trazer para as páginas da revista investigação que valida o que não alinha com o senso comum, assina na edição de 27 de fevereiro, reproduzida na edição on line, um estimulante artigo sobre algumas aquisições recentes da psicologia. O artigo não é de leitura fácil, mas há uma matéria que vale a pena revisitar neste espaço. Várias experimentações laboratoriais, e as experiências da investigação em psicologia envolvem frequentemente estudantes das universidades em que pontificam os investigadores, têm confirmado o chamado o princípio do “confirmation bias” (princípio através do qual se conclui que os indivíduos tendem a enviesar o modo como interpretam as conclusões fundamentadas sobre diferentes temas com que são confrontados. Fazem-no em função das suas próprias convicções anteriores. A razão teria os seus limites e entre esses o enviesamento em função de convicções anteriores seria um deles. O título do artigo de Kolbert é tão só o seguinte: “Porque razão os factos não mudam as nossas mentes?”. Trazendo para a discussão um livro recente publicado na Harvard University Press, com coautoria de Hugo Mercier e Dan Sperber (The Enigma of Reason), Kolbert destaca a explicação que os autores remontam à formação da espécie humana e às condições de cooperação necessária então prevalecentes para assegurar a sobrevivência. A razão humana ter-se-ia formado numa perspetiva de interação social e o enviesamento da confirmação remontaria a essas condições. Não deixa de ser irónico e bizarro que os nossos antepassados longínquos, algures nas savanas de África, tenham moldado a nossa razão, sendo determinantemente influenciados pela posição face ao grupo, cavalgando argumentos vencedores. Tudo se passa como se nunca tivéssemos pensado sozinhos. Poderia, assim, cavar-se um fosso entre o que a ciência nos diz e aquilo que dizemos a nós próprios nesse tipo de matérias.

Tenho de travar, pois apeteceria dizer que temos aqui uma avenida para explicar o êxito e generalização das redes sociais. E também não podemos ficar indiferentes à perturbação que nos causa ver grupos numerosos de pessoas a fixar-se num não facto, numa inverdade, numa pura mentira.

As ciências cognitivas sempre desafiaram a economia, sobretudo nos assombrosamente falaciosos pressupostos de agentes económicos racionais. Mas por este andar também as ciências sociais e a ciência política devem deixar-se fertilizar cruzadamente com estes contributos da ciência cognitiva. Trump não leu certamente Kolbert ou os investigadores aqui citados. Mas não terá tido uma ajudinha nesta matéria?

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