(Em tempos em que
o próprio conceito de facto parece estar em crise, com os não factos a transformarem-se
em pretensa evidência, as
ciências cognitivas oferecem-nos uma preocupante ajuda, pelo menos do ponto de
vista do estado da arte…)
Não só a partir da chegada da administração Trump ao poder, mas com exemplos
distribuídos por outras paragens, o mundo que alguns designaram da pós-verdade
ou da ficção lida como se fizesse registo de evidência e verdade está por aí, aparentemente
impune e, nos casos mais gravosos, democraticamente validado em urnas. O
conceito de mentira foi relativizado. E, pior do que isso, o facto em si não
convence, prevalecendo frequentemente o produto de narrativas construídas, sem
evidência.
Alguns apontam o dedo às redes sociais, o que me parece uma saída demasiado
fácil. As redes sociais não são elas próprias uma explicação para a pós-verdade,
pois carecem de explicação fundamentada para a sua reprodução alargada.
Pois, bem antes da administração Trump se recriar no mundo da pós-verdade e
da mais despudorada negação de evidências, as ciências cognitivas,
designadamente a psicologia, deram-nos pistas relevantes para compreender o que
se passa. Embora não seja líquido que os cultivadores da pós-verdade se apoiem no
produto dessa investigação, a verdade é que ignorar esses resultados pode ser
muito penalizador.
Elizabete Kolbert, uma das cronistas mais brilhantes da New Yorker, com
talento para trazer para as páginas da revista investigação que valida o que não
alinha com o senso comum, assina na edição de 27 de fevereiro, reproduzida na edição on line, um estimulante artigo sobre algumas aquisições recentes da
psicologia. O artigo não é de leitura fácil, mas há uma matéria que vale a pena
revisitar neste espaço. Várias experimentações laboratoriais, e as experiências
da investigação em psicologia envolvem frequentemente estudantes das
universidades em que pontificam os investigadores, têm confirmado o chamado o
princípio do “confirmation bias”
(princípio através do qual se conclui que os indivíduos tendem a enviesar o
modo como interpretam as conclusões fundamentadas sobre diferentes temas com
que são confrontados. Fazem-no em função das suas próprias convicções anteriores.
A razão teria os seus limites e entre esses o enviesamento em função de convicções
anteriores seria um deles. O título do artigo de Kolbert é tão só o seguinte: “Porque
razão os factos não mudam as nossas mentes?”. Trazendo para a discussão um livro
recente publicado na Harvard University Press, com coautoria de Hugo Mercier e
Dan Sperber (The Enigma of Reason),
Kolbert destaca a explicação que os autores remontam à formação da espécie
humana e às condições de cooperação necessária então prevalecentes para
assegurar a sobrevivência. A razão humana ter-se-ia formado numa perspetiva de
interação social e o enviesamento da confirmação remontaria a essas condições. Não
deixa de ser irónico e bizarro que os nossos antepassados longínquos, algures
nas savanas de África, tenham moldado a nossa razão, sendo determinantemente influenciados
pela posição face ao grupo, cavalgando argumentos vencedores. Tudo se passa como
se nunca tivéssemos pensado sozinhos. Poderia, assim, cavar-se um fosso entre o
que a ciência nos diz e aquilo que dizemos a nós próprios nesse tipo de matérias.
Tenho de travar, pois apeteceria dizer que temos aqui uma avenida para explicar
o êxito e generalização das redes sociais. E também não podemos ficar indiferentes
à perturbação que nos causa ver grupos numerosos de pessoas a fixar-se num não facto,
numa inverdade, numa pura mentira.
As ciências cognitivas sempre desafiaram a economia, sobretudo nos assombrosamente
falaciosos pressupostos de agentes económicos racionais. Mas por este andar
também as ciências sociais e a ciência política devem deixar-se fertilizar
cruzadamente com estes contributos da ciência cognitiva. Trump não leu
certamente Kolbert ou os investigadores aqui citados. Mas não terá tido uma ajudinha
nesta matéria?
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