terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A CIDADE HABITADA (V)




(Produto de uma tarde de trabalho sobre uma obra mais recente, Great American City – Chicago and the Enduring Neighborhood Effect, 2012, de Robert J. Sampson, fundamental para compreender a relevância dos efeitos de vizinhança, proximidade ou bairro na compreensão da Cidade …)

A preparação da intervenção no dia 6 de março sobre a Cidade Habitada e a Cidade por Habitar tem-se revelado mais complexa do que o esperado na aceitação do convite, mas uma complexidade agradável, embora penalizadora do tempo sobretudo para quem regressa, intermitentemente, ao tema da Cidade. E por muito que os meus amigos arquitetos, urbanistas e engenheiros mais reflexivos da Cidade por vezes não o admitam, a verdade é que as teorias sobre a Cidade reportam a dimensões mais vastas que se prendem com a investigação social e sobretudo à relação entre investigação e intervenção social. Por isso, neste meu trabalho de bricolage revisitando leituras ou obras que ficaram pela estante à espera de melhores dias, a reflexão é travessada por temas que ocuparam tempos não despiciendos da minha formação sobre a compreensão não só da questão urbana, mas também das ciências sociais em geral e do papel que a perplexa economia está destinada a desempenhar nesse contexto.

Nessa onda de percurso aparentemente algo errante sobre as peças de um puzzle que quero reconstruir para estruturar uma intervenção que honre a Conferência do dia 6, trabalhei hoje a obra de Robert J. Sampson, Great American City – Chicago and the Enduring Neighborhood Effect, publicada em 2012 pela University Chicago Press. Embora a sua leitura seja dificultada por nunca ter tido a oportunidade de visitar a cidade, trata-se a todos os títulos de uma obra marcante a vários níveis. Primeiro, porque nos traz em matéria de método de investigação um importante contributo sobre a combinação de métodos quantitativos para analisar a problemática urbana, aquilo que pomposamente se costuma designar de análise multimétodo, não aderindo completamente à via do experimentalismo social e das análises contrafcatuais tão em moda hoje entre os quantitativistas sociais. Segundo, porque a Great American City constitui um esforço notável de recuperação das análises da vizinhança, da proximidade ou do bairro/quarteirão como demonstração de que a dimensão mais coletiva e comunitária da Cidade não está morta, antes pelo contrário, bem viva e com desenvolvimentos promissores. Terceiro, porque a obra de Sampson permite antever novas orientações para a intervenção social na dimensão local, não diretamente focada nos indivíduos, os chamados públicos-alvo, mas antes na mediação organizacional que as instituições civis sem fins lucrativos podem assumir enquanto instrumento seguro para uma maior eficácia coletiva da ação social que se pretende implementar.

Mas como peça do puzzle que me proponho completar, é sobretudo a dimensão da vizinhança e da proximidade que me interessa, pelo que ela representa de alternativa ao princípio da seleção individual, ou seja, à ideia de que todos os comportamentos, desvios ou patologias sociais na Cidade resultam de processos de seleção individual. A atenção à vizinhança, proximidade, bairro ou quarteirão representa também uma opção metodológica e é reconfortante concluir que o tema resiste à moda das cidades globais, das cibercidades, dos modelos café-society. Sampson vai surpreendentemente mais longe ao considerar que os mecanismos (comportamentos) da seleção individual se subordinam aos contextos de vizinhança e de proximidade e a estruturas de ordem superior. A seleção individual está imersa (embedded) nos contextos sociais, sendo ela própria um efeito do contexto de vizinhança. O mecanismo é grosso modo este: a vizinhança influencia a seleção individual e as suas perceções que, por sua vez, influenciam a mobilidade e ultimamente a composição da vizinhança social e da dinâmica social que dela resulta ou nela conflui:

Os humanos reagem à diferença de vizinhança e essas reações constituem mecanismos e práticas sociais que por sua vez moldam perceções, relações pessoais e comportamentos que refletem os limites tradicionais de vizinhança internos e exteriores e, como um todo, definem a estrutura social da Cidade” (pag.356)

A emergência de variação na eficácia coletiva sugere que a capacidade de controlo social e de conexão com os outros é uma propriedade social básica e que vai para além da composição agrupada dos indivíduos - transcendendo a pobreza, a raça, o Estado e mesmo a Internet, permitindo antever menos violência e melhor saúde pública conforme é visível em vários estudos” (pag. 369).

Como é óbvio de Chicago para a realidade dos países de expressão portuguesa que são a razão da Conferência vai toda uma necessidade de problematizar criticamente o que é a vizinhança, proximidade, bairro ou quarteirão nesses modelos territoriais. Mas estou certo que, qualquer que seja a problematização crítica e adaptação necessária do conceito, a rejeição do lugar como entidade conceptual ou a ideia de que as vizinhanças são entidades vazias determinadas apenas por forças externas e poderosas são posturas que não nos conduzem à compreensão da (s) Cidade (s) na sua irredutível diferença.

A figura do puzzle começa a fazer sentido.

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