segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

GAROTICE NO TABU


A propósito da polémica do momento em torno da anterior administração da Caixa Geral de Depósitos e do ministro das Finanças, assim como do seu mais recente desenvolvimento traduzido na peregrina ideia de ser constituída uma nova comissão de inquérito, reproduzo abaixo um excerto da intervenção clara, precisa e concisa – sem prejuízo de suscetível de contestação – de Francisco Louçã na última edição da sua rubrica das Sextas-Feiras na SIC Notícias. Objetividade que, diga-se de passagem, não esteve tão presente no seu frágil comentário inicial acerca de uma eventual venda do Novo Banco à americana Lone Star. 

Cito, então, Louçã em discurso direto: “Há aqui um jogo estranho. O PSD e o CDS impuseram esta comissão de inquérito pelos seus poderes regimentais – têm todo o direito de o fazer – e conduziram-na ao longo do tempo. Portanto, querem terminá-la; eu percebo porque é que a querem terminar: porque a conclusão da comissão de inquérito não pode deixar de apontar para as enormes responsabilidades do governo de Passos Coelho e de Maria Luís Albuquerque na não recapitalização, na fragilização do banco ao longo dos últimos anos que é o aspeto essencial da dificuldade da sua vida no último ano. Ora, ao suspenderem o funcionamento da comissão que tinham pedido, o PSD e o CDS ficam com um problema que é: o que é que lhe vão fazer, vão acabar com a comissão como? Deixando de participar na comissão que eles próprios tinham exigido, ao mesmo tempo que exigem uma outra comissão sobre um tema relativamente parecido? Tudo isto é uma confusão. Portanto, vamos ver: primeiro ponto, como é que o PSD e o CDS enterram a comissão que tinham fabricado? Segundo ponto, criam uma nova sobre o mesmo tema mais o processo de negociação com a nova administração de António Domingues, que terminou com a sua demissão – muito bem, têm todo o direito de o fazer, creio aliás que não houve ainda resposta do PS ou do PCP ou do Bloco de Esquerda, mas acho que o que é natural é que participem nessa comissão como em qualquer comissão parlamentar, naturalmente defendendo o seu ponto de vista e as regras que a lei tem que seguir; isso levanta aqui um problema que é saber se esta comissão pode ou não permitir o acesso a comunicações privadas de Mário Centeno com António Domingues.
Eu estive a ver com cuidado a legislação sobre isto, porque isto aqui não é uma questão de vontade, é uma questão de saber o que é que a lei determina. As comissões de inquérito devem acompanhar e vigiar, controlar a atividade política dos governos. É um poder importantíssimo dos Parlamentos e, portanto, nunca deve ser diminuído, muito menos com este jogo tão estranho como aquele que eu descrevi. Portanto, deve funcionar na melhor forma. Agora, a comissão de inquérito deve saber todos os atos públicos, políticos, oficiais de decisão do governo e da administração de uma empresa pública. A pergunta sobre se pode ou não aceder a comunicações privadas de qualquer pessoa envolvida neste caso só tem, na minha opinião, uma resposta constitucional e legal: é que não pode, não pode, não pode e não deve. (...) Repare, eu fui ver a lei e a lei da comissão de inquérito diz que os depoimentos acompanham as regras testimoniais impostas pelo Código de Processo Penal. O que é que diz o Código de Processo Penal, nos artigos 187-189? É que, nos Tribunais e o mesmo se aplica na comissão de inquérito, pode haver acesso a comunicações privadas – telefónicas ou sms, pode haver – se está em investigação crimes como tráfico de droga, arma proibida, contrabando, terrorismo, criminalidade violenta, sequestro, rapto e tomada de reféns ou atentado contra a segurança do Estado, falsificação de moeda – ou seja, a lei portuguesa determina que há casos em que as autoridades têm que conhecer comunicações privadas, mas fora desses casos não podem. Noutro tipo de crimes, ou noutro tipo de questões políticas que não são crimes, não podem as autoridades interferir no direito privado das pessoas terem comunicações. Porque a pergunta passaria a ser: porque é que as minhas comunicações com Mário Centeno não são investigadas por uma comissão de inquérito? Ou de Mário Centeno com António Costa? Ou de António Costa com a mulher? Ou de Mário Centeno com os filhos, que podem ter tratado deste assunto. A distinção da privacidade nas comunicações é importantíssima na ordem constitucional. E não deixa de ser curioso, aliás, que partidos que dizem que o conhecimento do dinheiro que entra numa conta bancária – que pagou ou não pagou imposto – não pode ser verificado pelo fisco porque é privado, possam agora dizer que comunicações totalmente privadas – como são sms entre pessoas por telefones privados – possam ser verificados nalguma circunstância, não podem. Não pode haver um Estado que intervém em comunicações que são privadas, a não ser quando há crimes daquela natureza.
Aliás há uma história no Parlamento, deixem-me lembrar-lhes só isso: uma vez um primeiro-ministro, há pouco tempo, foi escutado ilegalmente por uma autoridade e ilegalmente o tribunal, que tinha transcrito estas comunicações, enviou-as a uma comissão de inquérito. Houve pelo menos um deputado, João Semedo, que se recusou a ver as comunicações ilegais, obtidas ilegalmente sobre um primeiro-ministro, porque não faziam parte da base da comissão de inquérito, eram privadas. E, portanto, é preciso fazermos uma distinção clara e o PSD e o CDS parecem perdidos nesta matéria, porque se insistirem nesta proposta ela será recusada porque é inconstitucional. (...)
Vai voltar ao mesmo. Vai voltar a investigar a Caixa Geral de Depósitos, vai investigar o que já sabemos: o Governo fez, de facto, um acordo com António Domingues, que foi a alteração do estatuto de gestor público – na minha opinião, já o disse aqui, fez mal –, o Tribunal Constitucional declarou que isso não impedia antes obrigava António Domingues e os seus administradores a apresentarem declaração de interesses, a partir daí o Primeiro-Ministro, o Presidente, todos declararam que havia a obrigação de declaração e António Domingues demitiu-se. Portanto, há aqui um caso político, claro que sim. Mas o caso nós já sabemos todo.
Se virmos como atuaram os vários agentes: António Domingues divulgou os seus sms agora, fez chegar a várias redações e fez chegar, através de Lobo Xavier, ao Presidente da República – bom, a sua noção de confidência e de inconfidência ficou esclarecida. O Partido Socialista reagiu mal à declaração do Presidente. O PSD e o CDS, em contrapartida, declararam guerra ao Presidente e essa guerra não vai parar – isto é um facto novo na política portuguesa e isso certamente que faz pressão sobre Marcelo Rebelo de Sousa. De Marcelo Rebelo de Sousa, os jornalistas que leram os sms entregues por António Domingues deram notícias um pouco diferentes: ou que ele teria resistido à possibilidade de não haver declaração ou que teria mesmo dito explicitamente que tinha que haver declaração – num caso ou noutro, isso nunca saberemos provavelmente, o que importa é que o Presidente tomou posição pública pela obrigação da declaração e é uma posição sólida. E o Primeiro-Ministro o mesmo. E, portanto, isto arrastou-se demasiado tempo, foi muito confuso, o Governo cedeu e portanto prolongou, criando condições para uma crise, quando o Tribunal Constitucional interveio quando o problema foi suscitado o assunto foi encerrado, da pior forma porque António Domingues, em vez de entregar as declarações e encerrar o assunto – como deveria ter feito com alguma dignidade –, resolveu criar um caso, arrastar, sair... bom, fazer um ajuste de contas. O ministro das Finanças é confrontado na opinião pública com o facto de ter feito um acordo mau e ter mantido este imbróglio que devia ter sido imediatamente resolvido. Só que ele foi resolvido e agora o grande problema é este: porque é que para o PSD e o CDS esta espécie de incendiar as comissões de inquérito do Parlamento, enlamear o Parlamento, confundir, porque é que há este frenesim tão grande, porque é que o PSD e o CDS nem se dão conta do enojamento da maior parte da população portuguesa sobre esta questão – as pessoas não querem ouvir falar disto, estão fartas de comissões de inquérito que não se concluem ou que têm um jogo, depois há outra igual à primeira, qual é o sentido disto? É uma garotice, tudo isto é uma garotice, as pessoas percebem que é uma garotice e, portanto, o PSD e o CDS estão a correr os seus ódios porque querem atacar Marcelo Rebelo de Sousa e porque querem atacar Mário Centeno: começa o processo de recapitalização, Mário Centeno tem a seu favor o grande argumento que arrasa a crítica da Direita – é o défice, toda a política da Direita foi feita em torno do défice e Mário Centeno consegue um grande triunfo. Se isso dá grande vantagem à economia portuguesa, dá uma vantagem negocial mas um enorme aperto que a economia portuguesa tem tido. O que é facto é que isto era o que a Direita exigia. Ver uma deputada do CDS dizer assim: conseguiu 2,1% mas tinha dito que até ia ser melhor, portanto é muito mau – estamos num domínio da garotice completa, garotice, e portanto se o PSD e o CDS percebessem que o que lhes dizem nas sedes não é bem o que o País pensa do que estão a pensar, que é uma espécie de lógica fechada de discurso político e que o País não quer saber desta brincadeira, talvez pudessem voltar a uma posição mais sólida, mas enfim é assim que estamos e é assim que vamos continuar talvez umas semanas.

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