terça-feira, 14 de maio de 2019

BERARDO (RE)DESCOBERTO

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Está escandalizado o pequeno mundo de políticos e comentadores da nossa praça. A causa desse mal-estar reside na prestação de José Berardo na Assembleia da República, em audição relacionada com a comissão de inquérito à CGD. Note-se, porém, que a maioria dos escandalizados corresponde mais ou menos aos mesmos que no passado recente se encantavam com a fortuna do empresário madeirense, mais ou menos aos mesmos que no passado recente seguiam com interesse e agrado as suas incursões nas assembleias gerais do BCP, mais ou menos aos mesmos que no passado recente aplaudiam a sua coleção de obras de arte e a respetiva colocação no CCB ao abrigo de um leonino protocolo contratual com o Estado português, mais ou menos aos mesmos que no passado recente acolhiam com naturalidade algumas barbaridades declarativas proclamadas ao abrigo de um estilo disléxico e de umas americanices aportuguesadas.

Agora que o homem está na mó de baixo perante a opinião pública, fruto de uma consciencialização crescente quanto aos desmandos de algumas gestões bancárias no período anterior à “bancarrota” e quanto aos aproveitamentos desprovidos de ética por parte de alguns como ele nesse quadro (e mil milhões de euros sempre é dinheiro a sério!), tudo aparenta surgir como novidade: a profunda amoralidade de Berardo e a sua quase involuntária desfaçatez, a sua intuitiva esperteza negocial/especulativa e a falta de mínimos de solidez objetiva e argumentativa nos seus racionais, o uso que ele sempre foi fazendo das margens de manobra que permissivamente lhe abriam e o papel central dos técnicos financeiros e jurídicos de que sempre se rodeou com fartura visando máximos de inventividade explorativa (com destaque para o homem de confiança que é André Luís Gomes). E sim, claro que há ali um ou mais golpes de baú, como é o caso do golpe de engenharia jurídica que tornou bancariamente inacessível a célebre coleção de quadros; mas claro que não deixa de ser também que tal só aconteceu porque, do lado das instituições financeiras, imperaram combinações variáveis de impreparação ou incompetência ou parolice ou freio nos dentes (quando não, mais pontualmente, outras dimensões podendo ir até ao foro criminal) – assim se explica, aliás, aquela frase arrogante mas verdadeira do alegado devedor: “eu pessoalmente não tenho dívidas, claro que não tenho dívidas”.


Mas um outro aspeto que igualmente me espanta nisto tudo é ver gente com especiais responsabilidades em matéria de (re)conhecimento das dinâmicas sociais e das suas ordens jurídicas (mais não fora que pelo posicionamento político que assumem) vir a terreiro com tiradas moralistas ou acusatórias em relação a um sujeito cujos padrões éticos (pessoais e coletivos) estão nos antípodas daquilo em que acreditam (mas podia ser de outro modo?), embora razoavelmente em linha (excessos de lata descontados) com a indisfarçável essência profunda do capitalismo.

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