(Enquanto a televisão global discute por que raio teria
uma embalagem de café Starbucks aparecer numa cena do quarto episódio da Guerra
dos Tronos, cá por mim fiz um corre-corre entre Lisboa e Porto para poder
usufruir de uma nova passagem do pianista russo Grigory Sokolov pela Casa da
Música. Da qualidade da performance
falarão os especialistas que não sou. Para mim fica a função de acusar o
caráter sublime desta noite pianística.)
Há uma química muito especial entre a sala Guilhermina Suggia da Casa da
Música e as prestações de Sokolov quando por ela passa. Não sei se é pela
disponibilidade fantástica do pianista russo em ceder aos pedidos insistentes
de prolongamento da performance (recordo há alguns anos uma série de oito
encores) que tende a gerar o caos na sala, à medida que as pessoas não vão
resistindo. Tenho para mim que não será por isso. A minha interpretação é que a
Suggia (eu seguramente) fica encantada pelo confronto entre a corpulência
física (cada vez mais curvado) de Sokolov e a extrema sensibilidade das suas
interpretações, no quadro de uma pianística concertante, como se mais
instrumentos estivessem ali perante os nossos olhos e ouvidos a expressar-se. A
Suggia tem visto felizmente muitos virtuosos da técnica pianística, mas aliar
esses dons à sublime delicadeza e sensibilidade toca-nos nos nossos pontos mais
sensíveis, por mais empedernidos em que a idade nos esteja a transformar.
Apesar de três irritantes telemóveis que teimaram em juntar-se ao que era
tocado, a química esteve ontem de novo à solta na Suggia, rendida aquele
prodígio de técnica virtuosa e de sublime delicadeza. O programa desta passagem
de Sokolov pelo Porto anunciava
precisamente uma ampla margem de manobra para o pianista russo afirmar uma vez
mais a excelência dessa combinação. Na primeira parte, uma entrada de maior
pujança e duração, a Sonata op. 2 nº 3 de Beethoven, seguida das onze bagatelas
do mesmo autor que nunca tinha ouvido tocadas por Sokolov. Na segunda parte,
dedicada a Brahms, Sokolov juntou praticamente num contínuo as 6 peças para
piano Opus 118 e as 4 peças para piano Opus 119 e aí o lirismo brotou ao nível
da paixão platónica que se diz Brahms ter sentido por Clara Schumann, mulher de
Robert Schumann, com quem interagiu em torno destas peças, segundo o excelente
texto de Pedro Almeida para o programa (link aqui).
Este lirismo por vezes pungente apontava seguramente para pelo menos um encore nesse registo. E assim aconteceu.
Mas os encores são uma dor de cabeça
para a minha impreparação musical. Eles revelam toda a fragilidade de quem não
teve formação musical que se visse. É um sério problema identificar a sua
origem. Neste caso, uma noite depois do concerto de ontem, busco em vão nas
estantes abarrotadas de discos (que me olham com o desdém daquela incómoda pergunta:
vais ter tempo de vida para nos ouvir pelo menos mais uma vez?) entre o vasto
material pianístico de Schubert (Zimmermann, Arrau, Richter, Brendel, Ushido, entre
outros) a solução. De qualquer modo, só para ouvir essa prestação valeria a
pena o corre-corre entre Lisboa e Porto e as poucas horas de sono exigidas pelo
Alfa muito madrugador. Mas eis que o You Tube consegue aparentemente responder à
minha interrogação: arrisco o Impromptus (D. 935- No. 2) (link aqui)
Quantos mais encores terei
perdido?
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