(Cálculos próprios a partir de dados DGEEC, link aqui)
(O debate sobre os famigerados
“chumbos” do nosso sistema educativo e a nova abordagem que visa reconduzir as
taxas de retenção em Portugal aos níveis do desenvolvimento médio padrão OCDE emergiram
inquinados segundo um padrão que é lamentavelmente recorrente. E o que me espanta é que são conhecidas as razões para tal recorrência sem
que, aparentemente, nada mude.)
A escola
pública de que eu e muita gente nos orgulhamos, sobretudo porque por lá passamos
e sabemos como ela nos moldou, está sob uma pressão terrível que muito boa gente
parece ignorar tão tontas são as suas tomadas de posição.
O erro
mais generalizado consiste em pedir-se o céu e a terra à Escola, como se esta
funcionasse numa redoma de vidro ou outro material qualquer, desinserida e
isolada da sociedade e da vida tenebrosa e sem futuro de muitas famílias. Da
Escola pública da minha geração até aos nossos dias poderia estabelecer-se um paralelo
entre as profundas transformações que atravessaram a sociedade portuguesa e as
consequências daí decorrentes para o novo universo social que entra na Escola. Sabemos
como o valor social que as famílias portuguesas atribuem à Escola e à Educação tem
oscilado perigosamente desde a sua mais completa desvalorização em tempos em
que a prioridade das famílias de mais baixo rendimento era a garantia de ter um
primeiro filho empregado até alguns sinais de que essas famílias terão compreendido
o potencial de ascensão social que a educação representava, passando por
momentos de desconfiança generalizada. Ao contrário de outras sociedades em que
o valor social da Educação sempre foi constante e ou crescentemente apreciado,
a sociedade portuguesa tem muitos dos seus estratos a desconfiar do retorno
social desse investimento familiar. Círculos viciosos de perceção entre
ambientes de muito baixos salários e de dúvida quanto ao valor real da
qualificação tenderam a formar-se neste contexto, contribuindo para essa perceção
de contornos pouco nítidos, em que a desconfiança regressa ao mais breve sinal
de falta de resposta do mercado de trabalho.
Se
acrescentarmos a esta equação, o reconhecimento inequívoco de que Portugal era
até há bem pouco tempo um dos países em que o retorno da educação era dos mais
elevados (diferença entre o salário médio de quem é qualificado por qualquer critério
que escolhamos e o salário médio de quem não tem essas qualificações), ainda
mais a nossa baralhação aumenta. Podem alguns invocar o facto de que famílias
com baixo grau de qualificação tendem a desvalorizar a progressão educativa dos
seus filhos, argumento que vejo muitas vezes reproduzido a propósito da baixa
qualificação média dos empresários portugueses e da tendência para esse padrão
desvalorizar a qualificação dos seus trabalhadores. Regra geral, contraponho a
evidência de que tais contextos noutras sociedades conduzem pelo contrário a
uma fortíssima valorização dos investimentos familiares na educação dos seus
filhos. Gente que passou por Macau dizia-me que era espantoso e comovente ver os
operários chineses a multiplicarem-se em esforços para que os seus filhos
pudessem estudar nas melhores escolas, incluindo as privadas.
A
pressão que existe sobre a Escola pública portuguesa está cheia de hipocrisias.
A
primeira consiste em pedir-se à Escola que substitua a presença de famílias
minimamente estruturadas onde elas são disfuncionais e atravessadas por toda a
série de perdas de sentido de futuro e de esperança. Imaginem o tipo de
problemas que emergem no cruzamento entre uma experiência pedagógica motivadora
para aprender a aprender e valorizar o que se aprende e o ambiente de chegada a
casa onde tudo isso é considerado uma bizantinice.
A
segunda hipocrisia resulta da contradição que hoje existe entre tais exigências
colocadas à Escola e a queda abrupta do valor e reconhecimento social dos
professores, e não vou discutir aqui a quota-parte de responsabilidade dos próprios
professores nessa desvalorização. Mas seguramente que a política pública, ignorando
a radical alteração das condições de trabalho dos professores, para isso terá
contribuído.
Ora,
qualquer perspetiva moderna sobre as políticas educativas sabe que a subida
vertiginosa das retenções ou chumbos constitui a medida mais fácil para ultrapassar
a incomodidade radical de ter alunos que não querem aprender, em aprender a
aprender, golpeados que são no quotidiano por mensagens contraditórias, as mais
fortes das quais apontam para que não lhes vai servir para nada melhorar o seu
desempenho nas Escolas. Fazer descer esses números, não por golpes mágicos de estatísticas
públicas, mas antes com trabalho sério de envolvimento dos alunos mais problemáticos,
constitui a via mais difícil e não depende apenas do esforço e motivação de profissionais.
É um problema de organização da Escola como equipa em que a cooperação entre recursos
deve constituir a prioridade mais importante.
O que é
que tem sido recorrente nestes assomos de modernidade no nosso sistema educativo?
A
pergunta certa é questionar se os poderes públicos têm uma ideia rigorosa do
investimento a realizar para assegurar que a modernidade educativa possa gerar
as melhorias de custo-benefício que todas as organizações internacionais
atribuem ao combate à retenção e ao “chumbo”. As melhorias custo-benefício só
serão reais se os investimentos cujo retorno assegurará essa melhoria forem
assumidos com rigor na plenitude das suas dimensões.
Existem
evidências de que só muito tardiamente outras incursões pela modernidade educativa
foram compreendidas na extensão total das suas implicações. Um bom exemplo
consiste na introdução do ensino profissional que continua a ser financiado
exclusivamente por Fundos Estruturais. A introdução destes cursos nas escolas
regulares não pretendia abrir uma saída aos alunos mais problemáticos, aos tais
que só aparecem na Escola por serem obrigados e mesmo assim … Basta falar com
qualquer professor que tenha desenvolvido uma prática reflexiva sobre a experiência
do ensino profissional para compreender o tempo que demorou a encarar essa
modalidade de cursos secundários como uma procura de competências que as qualificações
intermédias tenderão a proporcionar, encontrando na sua empregabilidade e no
seu teor de maior aplicação imediata razões para uma maior motivação. Poderemos
hoje dizer que o rigor da avaliação é nos cursos tecnológicos/profissionais similar
aos dos cursos gerais científico-humanísticos, com as devidas adaptações? Não
estarão as taxas de retenção nestes cursos subavaliadas por uma maior condescendência?
Não enfrenta hoje o ensino profissional uma forte necessidade de maior
investimento na sua qualidade para reforçar a valoração da sua procura social
pelas famílias portuguesas?
Qual é
então o meu ponto?
A
modernidade educativa nem sempre é compreendida em Portugal em toda a extensão
das suas implicações organizativas e de investimento na formação e nas condições
de trabalho ao serviço dos professores. Existe frequentemente a ilusão de que a
modernidade, qualquer que ela seja, é por si só garante de uma melhoria de
desempenho do sistema. Não é assim. Essa melhoria de desempenho para uma melhoria
da relação custo benefício, mas na qual o custo não é nulo.
Em meu
entender é isto que está de novo a passar-se neste debate sobre a abordagem às
retenções.
Nota
final: o candidato a líder da oposição Rui Rio passeou nesta matéria a sua mais
peculiar faceta de tentação populista e de rejeição da modernidade.
Não
havia necessidade, sobretudo com alguém como David Justino no seu grupo mais próximo.
As eleições internas não justificam tudo.
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