(Mais uma noite em que o
grande auditório da Gulbenkian pareceu transfigurar-se naquele tom grisalho e
cansado do seu público bastante envelhecido mas rendido à singeleza da grande
arte do piano. Maria João Pires com um programa totalmente dedicado ao
génio de Mozart tem um capital único de reconhecimento naquela sala e ontem
mais uma vez isso foi visível.)
A “residência” de Maria João Pires nesta temporada na Gulbenkian
está programada para três presenças, a segunda das quais foi ontem concretizada
com um programa totalmente dedicado a Mozart. Sabemos como a simbiose entre o génio
mozartiano e MJP é perfeita, desde há muitos anos com uma vasta discografia
para a demonstrar e sobretudo dela usufruir para puro deleite da nossa
sensibilidade.
Tal como na primeira presença (em setembro, aqui com júbilo
documentada), MJP fez-se acompanhar de uma artista de nacionalidade arménia,
creio que por influência da comemoração em curso da vida de Calouste Gulbenkian.
Neste caso, a companhia de MJP foi a pianista arménia Lilit Grigoryan, que
desconhecia, mas cuja magnífica interpretação a solo da Sonata para Piano nº 18, em Ré maior, K.576 nos
despertou para a sua revisitação futura e acompanhamento de carreira, não me
admirando que surja a participar numa próxima edição do ciclo anual de piano da
Fundação.
A colaboração entre MJP e Lilit Grigoryan representou uma
oportunidade de ouvir obras de Mozart para piano a quatro mãos que são uma
relativa raridade nas nossas discografias de amadores laicos, pois a sua ocorrência
não é lá muito frequente. Imagino que também por força do interesse de MJP em
explorar este tipo de colaborações teremos no futuro com mais frequência este tipo
de atuações, o que não significa que a nossa virtuosa esteja a seguir uma tendência
que, por exemplo, a minha diva Martha Argerich prosseguiu a partir do momento
em que o medo ou fobia do isolamento em palco a levou a optar por todo o tipo
de atuações menos a solo.
Assim, graças à opção de MJP fiquei a conhecer duas sonatas
para piano a quatro mãos, a K. 19d em Dó maior e a K. 521 em Dó maior que merecem uma pesquisa discográfica para as
rever no conforto e acalmia do meu escritório, numa simbiose de som e livros
que me são caros. Mas também houve oportunidade para duas outras obras a quatro
mãos de menor duração, o Adagio e Allegro para órgão mecânico em Fá menor, K. 594 que sugere que o próprio Mozart não fugiu ao fascínio
de compor para autómatos e instrumentos mecânicos e a Fuga em Sol menor, K.401.
Dirão os mais céticos que a procura de companhia é
natural dados os radiosos 75 anos de MJP. Mas o seu momento a solo no concerto
de ontem, com uma exuberante Sonata para Piano nº 11 em Lá maior, K.331 (link aqui) que a deixou esgotada prova o contrário e sugere
que a proteção divina ainda nos vai garantir que MJP aqueça por muito tempo a
nossa procura da perfeição auditiva. E até porque o terceiro momento da residência,
programado para março de 2020, apresenta-se com uma presença a solo.
O público da Gulbenkian continua a envelhecer, como todos nós, os sinais de rejuvenescimento não são muito promissores, mas isso
aguenta-se, é a vida como diria o outro. O que me irrita é aquela pressa cretina
em chegar cedo ao parque de estacionamento ou sabe-se lá onde, que perturba a
união final com o palco e os intérpretes.
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