sábado, 2 de novembro de 2019

TENSÕES E ESCOLHAS



(O debate na Assembleia da República sobre o programa do Governo em funções foi pouco estimulante. Há razões para isso e vale a pena desfiá-las. Não por acaso, neste contexto pouco estimulante, as vicissitudes de implantação do aeroporto do Montijo substituem-se praticamente a esse debate e o que emerge é pouco tranquilizador do ponto de vista de como nós portugueses gerimos, mal, o conhecimento que temos.)

Portugal vive um contexto político não direi entediante, mas seguramente um estado das coisas em que os problemas das diferentes formações políticas em vez de estimular a reatividade das restantes e a interação das ideias conduz a uma perspetiva meramente provisória e taticista sobre as coisas da governação.

Há razões de diferente natureza que explicam este estado das coisas.

No PS, a vitória nas últimas eleições colocou a descoberto os diferentes matizes que no seu interior têm vindo a formar-se sobre o alcance e operacionalização de uma governação com acordos, agora pontuais e não contratualizados, à esquerda. Até há bem pouco tempo, praticamente só Francisco Assis teve a coragem, louve-se a mesma, de explicitar o seu não apreço pela governação à esquerda, ainda mais clarificada quando Catarina Martins decidiu aventurar-se por expressar, taticamente apenas, a sua proximidade possível com a social-democracia. Após as últimas eleições, a situação alterou-se com algum significado e compreende-se agora melhor o significativo exercício de controlo interno que António Costa e o seu grupo mais chegado tiveram de exercitar para garantir o cumprimento da legislatura e do acordo que a suportou. No debate parlamentar em torno do programa do Governo francamente não compreendi a necessidade de invocar aritméticas parlamentares para pressionar a esquerda parlamentar. Como diria o Diácono “não havia necessidade”. A questão não tem sentido, pois o contexto que é relevante para afinar possíveis convergências não é o atual, mas o que pode ser provocado por um possível agravamento da situação macroeconómica determinada por fatores externos combinados com as nossas vulnerabilidades estruturais. Por agora, as clarificações que são necessárias registam-se ao nível exclusivo da intervenção do PS. A que é que me refiro? O que está aqui em causa é a necessidade de Mário Centeno e sua equipa equacionarem o rigor das contas públicas num quadro de escolhas públicas mais assumidas e menos por via de critérios opacos e sem escolhas da arte das cativações. Há serviços públicos a funcionarem com cativações orçamentais de praticamente metade do seu orçamento natural (pasme-se mas é esta a realidade). E, não raras vezes, essa prática é acompanhada de uma outra ainda perversa e que pode resumir-se neste aforismo de trazer por casa: “já que gastaste apenas isto este ano não há necessidade de orçamentar mais para o próximo ano”.

Esta minha interpretação não significa aceitar que o setor público gasta bem e nos padrões das reais necessidades. Sou dos que penso que, por vezes, é necessário partir do orçamento ZERO e exigir que os serviços justifiquem um orçamento positivo não apenas pela razão de existirem, mas explicitando o que é que resulta de positivo e benéfico da sua atuação. Sou também dos que são sensíveis à evidência de que o comportamento face à despesa de alguns médicos do SNS é completamente diferente estando a operar nesse SNS ou no setor privado, onde se transformam magicamente em gastadores responsáveis.

Mário Centeno e o PS ainda não conseguiram fazer conviver decentemente o rigor das contas públicas com um padrão consequente de escolhas que permita relançar responsavelmente o investimento público onde as carências são mais sensíveis. É um bom exercício para a legislatura enquanto os ventos da conjuntura macroeconómica não mudarem.

Mas a interação com a oposição parlamentar sofre inapelavelmente as agruras desta última.

O PSD, mesmo com o seu grupo parlamentar liderado por Rui Rio, tenderá a permanecer no limbo até às diretas. Durante este interregno, assistiremos a algumas investidas parlamentares mais ou menos populistas, nada de muito sério, com o PSD a falar mais para dentro do que para fora.  É um interregno parlamentar. A decisão de Rui de ficar à frente do seu grupo parlamentar é mais para controlar danos internos do que para apagar aquela afirmação à Rio de que o trabalho parlamentar é uma maçada. Até à próxima clarificação.

No CDS – PP a dinâmica parlamentar equivale a patinar em gelo frágil e prestes a quebrar-se. É de kits internos de sobrevivência que vai falar-se e perante este contexto até vamos ficar com a perceção de que Cecília Meireles é uma grande deputada. Daqui também não resultará interação positiva que se veja com a governação PS, pelo menos até se perceber se é para liquidar ou para revitalizar que a próxima liderança vai emergir.

À esquerda do PS, a partir do momento em que o acordo escrito foi afastado e o PCP resolveu retirar-se para uma cura de não proximidade comprometedora com a governação, não antevejo nada de estimulante nos próximos tempos. O PCP irá capitalizar ao máximo o poder de rua que ainda mantenha (mas atenção às novas tendências do sindicalismo), imaginando que uma cura de discurso será suficiente para estancar a sua perda estrutural. Quanto ao Bloco de Esquerda, a sua defesa do acordo escrito e contratualizado foi uma espécie de clímax no seu posicionamento. Estou curioso como vai ser a sua evolução em termos de postura de oposição. Tenho sérias dúvidas de que aponte a uma séria demonstração de que está maduro para negociações de governação, mas esperemos que me engane.

Neste contexto, só por algum milagre casuístico o debate do programa do Governo poderia ter sido estimulante. Já a reentrada em cena das vicissitudes do novo aeroporto do Montijo transporta-nos para um conjunto de evidências: (i) a privatização da ANA foi uma tragédia do ponto de vista do interesse estratégico nacional; (ii) as contrapartidas exigidas pela APA são um bom exemplo de um “terceiro melhor” e veremos se é já desta que vamos compreender a tragédia da privatização da ANA; (iii) no fim de contas, percebe-se uma vez mais que o país sabe mais em termos do que poderia ser a localização de um aeroporto complementar ao de Lisboa do que foi possível mobilizar para conduzir à decisão tomada; aliás, é sempre assim, e esta péssima maneira de mobilizar o conhecimento nacional traduz-se sempre em ineficácia operativa.

Sem comentários:

Enviar um comentário