(O debate na Assembleia
da República sobre o programa do Governo em funções foi pouco estimulante. Há
razões para isso e vale a pena desfiá-las. Não por acaso,
neste contexto pouco estimulante, as vicissitudes de implantação do aeroporto
do Montijo substituem-se praticamente a esse debate e o que emerge é pouco
tranquilizador do ponto de vista de como nós portugueses gerimos, mal, o
conhecimento que temos.)
Portugal vive um contexto político não direi entediante, mas
seguramente um estado das coisas em que os problemas das diferentes formações políticas
em vez de estimular a reatividade das restantes e a interação das ideias conduz
a uma perspetiva meramente provisória e taticista sobre as coisas da governação.
Há razões de diferente natureza que explicam este estado
das coisas.
No PS, a vitória nas últimas eleições colocou a
descoberto os diferentes matizes que no seu interior têm vindo a formar-se
sobre o alcance e operacionalização de uma governação com acordos, agora
pontuais e não contratualizados, à esquerda. Até há bem pouco tempo,
praticamente só Francisco Assis teve a coragem, louve-se a mesma, de explicitar
o seu não apreço pela governação à esquerda, ainda mais clarificada quando Catarina
Martins decidiu aventurar-se por expressar, taticamente apenas, a sua proximidade
possível com a social-democracia. Após as últimas eleições, a situação alterou-se
com algum significado e compreende-se agora melhor o significativo exercício de
controlo interno que António Costa e o seu grupo mais chegado tiveram de exercitar
para garantir o cumprimento da legislatura e do acordo que a suportou. No
debate parlamentar em torno do programa do Governo francamente não compreendi a
necessidade de invocar aritméticas parlamentares para pressionar a esquerda
parlamentar. Como diria o Diácono “não havia necessidade”. A questão não tem
sentido, pois o contexto que é relevante para afinar possíveis convergências não
é o atual, mas o que pode ser provocado por um possível agravamento da situação
macroeconómica determinada por fatores externos combinados com as nossas
vulnerabilidades estruturais. Por agora, as clarificações que são necessárias registam-se
ao nível exclusivo da intervenção do PS. A que é que me refiro? O que está aqui
em causa é a necessidade de Mário Centeno e sua equipa equacionarem o rigor das
contas públicas num quadro de escolhas públicas mais assumidas e menos por via
de critérios opacos e sem escolhas da arte das cativações. Há serviços públicos
a funcionarem com cativações orçamentais de praticamente metade do seu orçamento
natural (pasme-se mas é esta a realidade). E, não raras vezes, essa prática é
acompanhada de uma outra ainda perversa e que pode resumir-se neste aforismo de
trazer por casa: “já que gastaste apenas isto este ano não há necessidade de
orçamentar mais para o próximo ano”.
Esta minha interpretação não significa aceitar que o
setor público gasta bem e nos padrões das reais necessidades. Sou dos que penso
que, por vezes, é necessário partir do orçamento ZERO e exigir que os serviços
justifiquem um orçamento positivo não apenas pela razão de existirem, mas
explicitando o que é que resulta de positivo e benéfico da sua atuação. Sou
também dos que são sensíveis à evidência de que o comportamento face à despesa
de alguns médicos do SNS é completamente diferente estando a operar nesse SNS
ou no setor privado, onde se transformam magicamente em gastadores responsáveis.
Mário Centeno e o PS ainda não conseguiram fazer conviver
decentemente o rigor das contas públicas com um padrão consequente de escolhas
que permita relançar responsavelmente o investimento público onde as carências
são mais sensíveis. É um bom exercício para a legislatura enquanto os ventos da
conjuntura macroeconómica não mudarem.
Mas a interação com a oposição parlamentar sofre inapelavelmente
as agruras desta última.
O PSD, mesmo com o seu grupo parlamentar liderado por Rui
Rio, tenderá a permanecer no limbo até às diretas. Durante este interregno, assistiremos
a algumas investidas parlamentares mais ou menos populistas, nada de muito sério,
com o PSD a falar mais para dentro do que para fora. É um interregno parlamentar. A decisão de Rui
de ficar à frente do seu grupo parlamentar é mais para controlar danos internos
do que para apagar aquela afirmação à Rio de que o trabalho parlamentar é uma maçada.
Até à próxima clarificação.
No CDS – PP a dinâmica parlamentar equivale a patinar em gelo
frágil e prestes a quebrar-se. É de kits internos de sobrevivência que vai falar-se
e perante este contexto até vamos ficar com a perceção de que Cecília Meireles é
uma grande deputada. Daqui também não resultará interação positiva que se veja
com a governação PS, pelo menos até se perceber se é para liquidar ou para
revitalizar que a próxima liderança vai emergir.
À esquerda do PS, a partir do momento em que o acordo escrito
foi afastado e o PCP resolveu retirar-se para uma cura de não proximidade comprometedora
com a governação, não antevejo nada de estimulante nos próximos tempos. O PCP
irá capitalizar ao máximo o poder de rua que ainda mantenha (mas atenção às
novas tendências do sindicalismo), imaginando que uma cura de discurso será
suficiente para estancar a sua perda estrutural. Quanto ao Bloco de Esquerda, a
sua defesa do acordo escrito e contratualizado foi uma espécie de clímax no seu
posicionamento. Estou curioso como vai ser a sua evolução em termos de postura
de oposição. Tenho sérias dúvidas de que aponte a uma séria demonstração de que
está maduro para negociações de governação, mas esperemos que me engane.
Neste contexto, só por algum milagre casuístico o debate
do programa do Governo poderia ter sido estimulante. Já a reentrada em cena das
vicissitudes do novo aeroporto do Montijo transporta-nos para um conjunto de
evidências: (i) a privatização da ANA foi uma tragédia do ponto de vista do
interesse estratégico nacional; (ii) as contrapartidas exigidas pela APA são um
bom exemplo de um “terceiro melhor” e veremos se é já desta que vamos compreender
a tragédia da privatização da ANA; (iii) no fim de contas, percebe-se uma vez
mais que o país sabe mais em termos do que poderia ser a localização de um
aeroporto complementar ao de Lisboa do que foi possível mobilizar para conduzir
à decisão tomada; aliás, é sempre assim, e esta péssima maneira de mobilizar o
conhecimento nacional traduz-se sempre em ineficácia operativa.
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