segunda-feira, 4 de novembro de 2019

SPORTINGUITE



(Não sou um fanático do futebol. Controlo bem a paixão clubista e gosto de ser um espectador solitário, o que contraria qualquer perfil de adepto. O futebol interessa-me sobretudo do ponto de vista de que ele revela traços sociais e comportamentais que só por vias derivadas ou indiretas é possível captar.)

Já há muito tempo perdi as ilusões de que o futebol seja uma competição justa. Sobretudo a partir do momento em que foi atravessado pela deriva da concentração do poder, que se materializa em diferenças orçamentais brutais minimizadas em países de maior agressividade da cultura, mas substancialmente agravadas onde competir com armas diferentes tem um outro significado.

Nos tempos mais recentes, a liga portuguesa tem apresentado espetáculos deprimentes, que começam no simples enunciado da composição de algumas equipas, na prática um desafio dos maiores aos desgraçados de treinadores que são obrigados a fazer equipa de amontoados de jogadores recrutados sabe-se lá ondem e por que critérios. Um cidadão mediano interroga-se por exemplo como é possível que um clube como o Desportivo das Aves ganha na época anterior a Liga Revelação com uma equipa presume-se vinda da formação e tem na Liga principal uma amálgama de repatriados, designadamente de brasileiros de quarta categoria. Algo de estranho se passará nessa contradição manifesta.

Dentro do perfil atípico de adepto que atrás referi não me custa absolutamente nada reconhecer que alguns podres da situação atual também são reconhecíveis no clube de estimação, o SLB. Aliás, o futebol é claramente uma daquelas atividades com maior densidade de incompetentes com remunerações elevadas por metro quadrado e isso explica parte do problema. As contradições reproduzem-se endogenamente, pois num mercado em que a regulação funcionasse e os stakeholders mais aguerridos não fossem as claques (violentas) organizadas muita gente iria para o olho da rua, mendigar uma ocupação.

Mas hoje o objetivo do meu post consiste em considerar os problemas do Sporting como a ilustração de um síndrome agudo. Que me desculpe o blogue A Insustentável Leveza de Liedson, mas não é por mal, é simplesmente por me apetecer analisar a situação dos leões da segunda circular e do estádio às pintinhas amarelas, onde a única vez que pisei tal sítio foi, pasme-se, para ver um filme espantoso do Bergman.

Tenho de confessar que dissecar o problema Sporting me dá algum gozo, pensando sobretudo em alguma elite política e económica que se esgota de amores pelos mitos de Alvalade e que permaneceu amarrada às recordações do espantoso quinteto dos Violinos, em que o meu referencial era o Travassos. Comparando com as fixações do SLB nas duas taças dos campeões europeus de Bela Guttmann, estas são recordações de brincar face à fixação dos leões. Ainda tenho memória da guerrilha SCP versus SLB na disputa do génio de Eusébio e como a tal elite política com elevada representação no regime de então foi totalmente ludibriada por uns comerciantes habilidosos da então Lourenço Marques.

Mas a situação evolutiva do Sporting daria um ensaio. Dividindo os tempos leoninos em antes de Bruno e depois de Bruno, concordando que a passagem deste pelo clube deve ser considerada um pesadelo do qual é preciso acordar completamente, os tempos antes de Bruno são caracterizados pela sucessão de falhanços da tecnocracia financeira e gestionária na gestão desportiva. Este dado é curioso pois demonstra como é difícil a transição de uma gestão desportiva baseada no poder pessoal e em práticas de escrutínio público quase nulo para uma gestão profissionalizada que contenha tais impulsos no seu devido ligar e os vá moldando a um escrutínio decente. No Sporting, essa transição de grande complexidade foi fatal e precipitou acontecimentos posteriores. Talvez os personagens que lideraram essa transição, Soares Franco, Bettencourt ou Godinho talvez não tivessem encontrado os parceiros internos certos para reunir os equilíbrios necessários e permitir mudanças mais consolidadas. Penso que o FCP foi mais hábil nessa matéria, socorrendo-se de personalidades da gestão desportiva sob a liderança de alguém que sabe mais do assunto do que todos os outros juntos. O problema foi que no Sporting essa transição falhou e o que uma gestão profissional deveria, em princípio, assegurar a sanidade financeira precipitou o seu contrário, sem resultados desportivos convincentes.

É um caso de estudo compreender como é que uma organização largamente identificada com uma certa elite política e económica sucumbe à tentação populista de Bruno de Carvalho. Fica para a história o tempo tardio de resposta de personalidades eminentes dessa elite às evidências gigantescas de que estava em curso uma deriva populista de grandes proporções, que até muito tarde admitiram que o homem era maluco mas tinha boas intenções. Não deixei na altura de remoer que os meus pensamentos estavam certos: o futebol acolhe
por vezes tendências e fenómenos que aí se manifestam com mais clareza do que se revelam na sociedade. Os acontecimentos de Alcochete são a manifestação trágica dessa incapacidade de ver o que estava já claro, o ver para crer que as elites distraídas teimavam em ignorar.

Os tempos pós Bruno prometeram união de esforços e perfilaram candidatos que mostravam decência de processos sem representar as ilusões de uma certa tecnocracia que imagina saber de futebol. Nesses tempos, resistiu uma personalidade do “brunismo”, o inefável ex-autarca e presidente dos bombeiros Mata Soares, o que constitui uma boa ilustração dos males leoninos.

Desde a eleição de Varandas até aos nossos dias, derrota ontem mais do que comprometedora com o Tondela, têm-se sucedido tiros no pé e provas corriqueiras de força que não existe. Foi a despedida de Kaiser que ainda estará hoje para perceber porque raio de razão acabou em Lisboa a treinar o Sporting, as novelas das vendas de jogadores relativamente importantes na manobra do mesmo Kaiser como Bas Dost ou Rafinha, as contratações de pontas de lança que afinal não eram pontas de lança (Jesé e Bolasie), a humilhação de ter um treinador que não é oficialmente reconhecido (não está em causa a competência de Silas), uma mais do que duvidosa operação de perdão de dívida (aí a elite terá trabalhado na sombra) e o que virá por aí. No seio de tal bagunça, o ar alucinado com que Bruno Fernandes enfrenta os jogos como se fosse o salvador da pátria leonina representa bem a imagem de uma organização que perdeu há muito o rumo.

Sim, o problema do Sporting é essencialmente do foro organizacional e da inexistência de profissionais competentes. A tecnocracia gestionária e financeira falhou, o populismo mais rasteiro trouxe tragédia à organização e vive-se agora na organização a difícil transição para uma normalidade que não será seguramente a que passa pela cabeça das suas elites distraídas.

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