(Não sou um fanático do
futebol. Controlo bem a paixão clubista e gosto de ser um espectador solitário,
o que contraria qualquer perfil de adepto. O futebol
interessa-me sobretudo do ponto de vista de que ele revela traços sociais e
comportamentais que só por vias derivadas ou indiretas é possível captar.)
Já há muito tempo perdi as ilusões de que o futebol seja
uma competição justa. Sobretudo a partir do momento em que foi atravessado pela
deriva da concentração do poder, que se materializa em diferenças orçamentais
brutais minimizadas em países de maior agressividade da cultura, mas substancialmente
agravadas onde competir com armas diferentes tem um outro significado.
Nos tempos mais recentes, a liga portuguesa tem apresentado
espetáculos deprimentes, que começam no simples enunciado da composição de algumas
equipas, na prática um desafio dos maiores aos desgraçados de treinadores que são
obrigados a fazer equipa de amontoados de jogadores recrutados sabe-se lá ondem
e por que critérios. Um cidadão mediano interroga-se por exemplo como é possível
que um clube como o Desportivo das Aves ganha na época anterior a Liga Revelação
com uma equipa presume-se vinda da formação e tem na Liga principal uma amálgama
de repatriados, designadamente de brasileiros de quarta categoria. Algo de
estranho se passará nessa contradição manifesta.
Dentro do perfil atípico de adepto que atrás referi não
me custa absolutamente nada reconhecer que alguns podres da situação atual também
são reconhecíveis no clube de estimação, o SLB. Aliás, o futebol é claramente
uma daquelas atividades com maior densidade de incompetentes com remunerações
elevadas por metro quadrado e isso explica parte do problema. As contradições reproduzem-se
endogenamente, pois num mercado em que a regulação funcionasse e os stakeholders mais aguerridos não fossem as
claques (violentas) organizadas muita gente iria para o olho da rua, mendigar
uma ocupação.
Mas hoje o objetivo do meu post consiste em considerar os problemas do Sporting como a
ilustração de um síndrome agudo. Que me desculpe o blogue A Insustentável Leveza de Liedson, mas não é por mal, é simplesmente
por me apetecer analisar a situação dos leões da segunda circular e do estádio às
pintinhas amarelas, onde a única vez que pisei tal sítio foi, pasme-se, para
ver um filme espantoso do Bergman.
Tenho de confessar que dissecar o problema Sporting me dá
algum gozo, pensando sobretudo em alguma elite política e económica que se
esgota de amores pelos mitos de Alvalade e que permaneceu amarrada às recordações
do espantoso quinteto dos Violinos, em que o meu referencial era o Travassos.
Comparando com as fixações do SLB nas duas taças dos campeões europeus de Bela
Guttmann, estas são recordações de brincar face à fixação dos leões. Ainda
tenho memória da guerrilha SCP versus SLB na disputa do génio de Eusébio e como
a tal elite política com elevada representação no regime de então foi totalmente
ludibriada por uns comerciantes habilidosos da então Lourenço Marques.
Mas a situação evolutiva do Sporting daria um ensaio. Dividindo
os tempos leoninos em antes de Bruno e depois de Bruno, concordando que a passagem
deste pelo clube deve ser considerada um pesadelo do qual é preciso acordar completamente,
os tempos antes de Bruno são caracterizados pela sucessão de falhanços da tecnocracia
financeira e gestionária na gestão desportiva. Este dado é curioso pois
demonstra como é difícil a transição de uma gestão desportiva baseada no poder
pessoal e em práticas de escrutínio público quase nulo para uma gestão
profissionalizada que contenha tais impulsos no seu devido ligar e os vá
moldando a um escrutínio decente. No Sporting, essa transição de grande
complexidade foi fatal e precipitou acontecimentos posteriores. Talvez os
personagens que lideraram essa transição, Soares Franco, Bettencourt ou Godinho
talvez não tivessem encontrado os parceiros internos certos para reunir os
equilíbrios necessários e permitir mudanças mais consolidadas. Penso que o FCP
foi mais hábil nessa matéria, socorrendo-se de personalidades da gestão desportiva
sob a liderança de alguém que sabe mais do assunto do que todos os outros
juntos. O problema foi que no Sporting essa transição falhou e o que uma gestão
profissional deveria, em princípio, assegurar a sanidade financeira precipitou o
seu contrário, sem resultados desportivos convincentes.
É um caso de estudo compreender como é que uma organização
largamente identificada com uma certa elite política e económica sucumbe à
tentação populista de Bruno de Carvalho. Fica para a história o tempo tardio de
resposta de personalidades eminentes dessa elite às evidências gigantescas de
que estava em curso uma deriva populista de grandes proporções, que até muito
tarde admitiram que o homem era maluco mas tinha boas intenções. Não deixei na
altura de remoer que os meus pensamentos estavam certos: o futebol acolhe
por vezes tendências e fenómenos que aí se manifestam com
mais clareza do que se revelam na sociedade. Os acontecimentos de Alcochete são
a manifestação trágica dessa incapacidade de ver o que estava já claro, o ver
para crer que as elites distraídas teimavam em ignorar.
Os tempos pós Bruno prometeram união de esforços e perfilaram
candidatos que mostravam decência de processos sem representar as ilusões de
uma certa tecnocracia que imagina saber de futebol. Nesses tempos, resistiu uma
personalidade do “brunismo”, o inefável ex-autarca e presidente dos bombeiros Mata
Soares, o que constitui uma boa ilustração dos males leoninos.
Desde a eleição de Varandas até aos nossos dias, derrota
ontem mais do que comprometedora com o Tondela, têm-se sucedido tiros no pé e
provas corriqueiras de força que não existe. Foi a despedida de Kaiser que
ainda estará hoje para perceber porque raio de razão acabou em Lisboa a treinar
o Sporting, as novelas das vendas de jogadores relativamente importantes na
manobra do mesmo Kaiser como Bas Dost ou Rafinha, as contratações de pontas de
lança que afinal não eram pontas de lança (Jesé e Bolasie), a humilhação de ter
um treinador que não é oficialmente reconhecido (não está em causa a competência
de Silas), uma mais do que duvidosa operação de perdão de dívida (aí a elite
terá trabalhado na sombra) e o que virá por aí. No seio de tal bagunça, o ar
alucinado com que Bruno Fernandes enfrenta os jogos como se fosse o salvador da
pátria leonina representa bem a imagem de uma organização que perdeu há muito o
rumo.
Sim, o problema do Sporting é essencialmente do foro organizacional
e da inexistência de profissionais competentes. A tecnocracia gestionária e financeira
falhou, o populismo mais rasteiro trouxe tragédia à organização e vive-se agora
na organização a difícil transição para uma normalidade que não será seguramente
a que passa pela cabeça das suas elites distraídas.
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