(Rodrigo Sassi - Esquinas que me atravessam, arte que acontece)
(Não sei sinceramente se
fruto do colecionismo afetivo dos meus pais ou de algum talento pessoal de
arquivista que entretanto se perdeu com o tempo, mas seguramente graças ao
esmero organizativo da minha mulher Mité, recuperei escritos de adolescência,
diários, meros escritos para desanuviar e recortes de jornal com coisas que a paciência
de outros aceitou publicar. Não me perco frequentemente em regressos
ao passado, mas este pequeno texto publicado no saudoso Diário de Lisboa juvenil
(o nº 643) de 14 de outubro de 1969 traz-me uma incursão fugaz por o que
poderia designar de tentação neo-realista na periferia metropolitana do
Porto, mais propriamente em S.Mamede de Infesta, onde vivi mais de 25 anos.)
Reproduzo-o
aqui para o preservar, já que o estado do papel do DL juvenil já teve melhores
dias e corria o risco de se desagregar com a erosão do tempo.
O
texto chama-se:
A ESQUINA DA CASA ALTA
“São quatro.
Andam pelos vinte. Operários da indústria, figuram no “curriculum vitae” da minha rua. Definem-lhe uma mistura de rural e urbano.
Reúnem-se todas as noites à esquina da casa alta recortados por luz
fosforescente que cai de um candeeiro sujo. Em frente, a vegetação espessa de
uma casa solarenga esconde da curiosidade própria destes sítios uma família de ingleses.
As janelas verdes desbotadas parecem concordar com a gente que diz que foi
fracasso, falência ou desgraça. Uma questão de moeda fraca ou foi o jogo que os
arruinou? As opiniões dividem-se. Mas a ruína deles não é palpável, não se vê.
Não percebo.
São quatro.
Ouço-os agora e escrevo, escrevo sempre. Falam talvez de mulheres, televisão,
futebol. As palavras chegam-me dispersas. As mais altas ajudam-me a construir o
tema. Insultam-se às vezes. Quem não gosta é a senhora da casa alta. Deve
adormecer com palavrões nos ouvidos. Abre a janela e ralha. Diz que vai chamar a
guarda, o regedor, que faz queixa não sei onde. Desculpam-se. A senhora da casa
alta vive só.
A discussão prolonga-se pela noite. E depois das dez o
ambiente aquece. Pela rua que ladeia o refúgio dos ingleses e que sobe bastante
aparecem as primeiras pataqueiras que trabalham numa fábrica de tecidos. Oito
horas contínuas diante de homens-teares que lhes espreitam o corpo roliço e que
esperam a mínima queda, o primeiro convite. E quando depois das dez palmilham o
caminho escuro e só, trazem a revolta no corpo, nos fios que aclaram os cabelos
castanhos e negros, na língua. E falam, discutem, berram até. Ao passarem na
esquina da casa alta surgem os piropos de parte a parte, ferem-se. Nunca consegui
saber quem provoca a discussão. Não chegam a parar. Porfiam até dobrar a outra
esquina lá em cima. Quem termina é o vencedor. Na cave dianteira dos livros e
das folhas sou testemunha. Por momentos, suspende-se um clima de fúria
destrutiva, de erotismo felino e acerado. Imperceptível. Até que desaparece. Escrevo
pendente do que se passou e se repete.
Um dia por semana emigram para o Porto. De noite. Venho
por vezes com eles no último eléctrico. Sento-me. Ficam na plataforma avivando
os pormenores da fuga noturna. Do mesmo modo alinhavo a conversa. Passam por um
bar ou dois. E acusam-se de terem cedido. O mais valente é o que paga menos
cerveja. Quem não pagar nenhuma é super. Ela bem tentou. Mas ele estava ali era
para se divertir e não para se arruinar. Quase sempre o homem dos bilhetes olha-os
interessado. A cabeça pesa-me e o “eléctrico” dá a velocidade que a noite
permite. O jornal ou o livro fecham-se sem querer. Perco o fio da conversa.
Desperto. Saio do eléctrico. Em breve passo-lhes à frente.
Boa noite. Saudam-me. Trazem o Porto nos fatos sem óleo, no ruído do choque dos
sapatos com o asfalto. E fanfarronam cervejas que afinal pagaram, beijos que não
tiveram. Passa da uma. Silencioso, o Mercedes do inglês desliza pela rua abaixo
até passar o portão da casa solarenga. As grades fecham-se e os dois lampiões que
as ladeiam apagam-se. Só a vegetação espessa e uma luz no sótão. Subitamente emudecidos
cada qual abre a sua porta. Despedem-se.
São três. Amanhã dois, depois talvez nenhum. A tropa vai
dizimando o grupo. Um deles, o Carlos, casou com a criada dos ingleses. Vingança?
Ainda escrevo. A senhora da casa alta já não abre a janela. Adormece facilmente
ou talvez não. As pataqueiras cruzam a esquina mais silenciosas. Devem encontrar
por certo outro grupo mais adiante. Só o Mercedes continua a deslizar
silencioso, dominador. Desenhando um círculo a luz fosforescente está lá.”
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