sexta-feira, 15 de novembro de 2019

HÁ 50 ANOS

(Rodrigo Sassi - Esquinas que me atravessam, arte que acontece)


(Não sei sinceramente se fruto do colecionismo afetivo dos meus pais ou de algum talento pessoal de arquivista que entretanto se perdeu com o tempo, mas seguramente graças ao esmero organizativo da minha mulher Mité, recuperei escritos de adolescência, diários, meros escritos para desanuviar e recortes de jornal com coisas que a paciência de outros aceitou publicar. Não me perco frequentemente em regressos ao passado, mas este pequeno texto publicado no saudoso Diário de Lisboa juvenil (o nº 643) de 14 de outubro de 1969 traz-me uma incursão fugaz por o que poderia designar de tentação neo-realista na periferia metropolitana do Porto, mais propriamente em S.Mamede de Infesta, onde vivi mais de 25 anos.)

Reproduzo-o aqui para o preservar, já que o estado do papel do DL juvenil já teve melhores dias e corria o risco de se desagregar com a erosão do tempo.

O texto chama-se:

A ESQUINA DA CASA ALTA

“São quatro. Andam pelos vinte. Operários da indústria, figuram no “curriculum vitae” da minha rua. Definem-lhe uma mistura de rural e urbano. Reúnem-se todas as noites à esquina da casa alta recortados por luz fosforescente que cai de um candeeiro sujo. Em frente, a vegetação espessa de uma casa solarenga esconde da curiosidade própria destes sítios uma família de ingleses. As janelas verdes desbotadas parecem concordar com a gente que diz que foi fracasso, falência ou desgraça. Uma questão de moeda fraca ou foi o jogo que os arruinou? As opiniões dividem-se. Mas a ruína deles não é palpável, não se vê. Não percebo.
São quatro. Ouço-os agora e escrevo, escrevo sempre. Falam talvez de mulheres, televisão, futebol. As palavras chegam-me dispersas. As mais altas ajudam-me a construir o tema. Insultam-se às vezes. Quem não gosta é a senhora da casa alta. Deve adormecer com palavrões nos ouvidos. Abre a janela e ralha. Diz que vai chamar a guarda, o regedor, que faz queixa não sei onde. Desculpam-se. A senhora da casa alta vive só.
A discussão prolonga-se pela noite. E depois das dez o ambiente aquece. Pela rua que ladeia o refúgio dos ingleses e que sobe bastante aparecem as primeiras pataqueiras que trabalham numa fábrica de tecidos. Oito horas contínuas diante de homens-teares que lhes espreitam o corpo roliço e que esperam a mínima queda, o primeiro convite. E quando depois das dez palmilham o caminho escuro e só, trazem a revolta no corpo, nos fios que aclaram os cabelos castanhos e negros, na língua. E falam, discutem, berram até. Ao passarem na esquina da casa alta surgem os piropos de parte a parte, ferem-se. Nunca consegui saber quem provoca a discussão. Não chegam a parar. Porfiam até dobrar a outra esquina lá em cima. Quem termina é o vencedor. Na cave dianteira dos livros e das folhas sou testemunha. Por momentos, suspende-se um clima de fúria destrutiva, de erotismo felino e acerado. Imperceptível. Até que desaparece. Escrevo pendente do que se passou e se repete.
Um dia por semana emigram para o Porto. De noite. Venho por vezes com eles no último eléctrico. Sento-me. Ficam na plataforma avivando os pormenores da fuga noturna. Do mesmo modo alinhavo a conversa. Passam por um bar ou dois. E acusam-se de terem cedido. O mais valente é o que paga menos cerveja. Quem não pagar nenhuma é super. Ela bem tentou. Mas ele estava ali era para se divertir e não para se arruinar. Quase sempre o homem dos bilhetes olha-os interessado. A cabeça pesa-me e o “eléctrico” dá a velocidade que a noite permite. O jornal ou o livro fecham-se sem querer. Perco o fio da conversa.
Desperto. Saio do eléctrico. Em breve passo-lhes à frente. Boa noite. Saudam-me. Trazem o Porto nos fatos sem óleo, no ruído do choque dos sapatos com o asfalto. E fanfarronam cervejas que afinal pagaram, beijos que não tiveram. Passa da uma. Silencioso, o Mercedes do inglês desliza pela rua abaixo até passar o portão da casa solarenga. As grades fecham-se e os dois lampiões que as ladeiam apagam-se. Só a vegetação espessa e uma luz no sótão. Subitamente emudecidos cada qual abre a sua porta. Despedem-se.
São três. Amanhã dois, depois talvez nenhum. A tropa vai dizimando o grupo. Um deles, o Carlos, casou com a criada dos ingleses. Vingança? Ainda escrevo. A senhora da casa alta já não abre a janela. Adormece facilmente ou talvez não. As pataqueiras cruzam a esquina mais silenciosas. Devem encontrar por certo outro grupo mais adiante. Só o Mercedes continua a deslizar silencioso, dominador. Desenhando um círculo a luz fosforescente está lá.”

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