quinta-feira, 21 de novembro de 2019

O SENHOR VENTURA

(Fotografia de Rui Gaudêncio)


(Vários analistas têm salientado a evidência de que uma das razões para o florescimento do populismo mais repulsivo deriva da inabilidade com que as forças políticas, designadamente as de esquerda, mas também as mais voláteis de direita, tendem a lidar com o fenómeno. Ao contrário do que gente pouco avisada tem vindo a exprimir, a situação portuguesa parece não estar fora dessa evidência, como a chegada à Assembleia da República do senhor Ventura o mostra claramente, facto amplamente reiterado nos acontecimentos desta tarde com a manifestação de protesto dos agentes da PSP e dos guardas da GNR.)

Em horário prime time, o senhor Ventura teve o seu momento de forte exposição televisiva, alinhando com o movimento inorgânico de protesto, o Movimento Zero, identificado segundo as principais fontes como composto de polícias e guardas identificados com a extrema-direita.

A preceder esta exposição, que Pedro Guerreiro na TVI com José Alberto Carvalho não hesitou em classificar de apoteose (onde estamos!), houve um momento na Assembleia da República que explicita bem o que designei anteriormente de inabilidade que favorece aquilo que se pretende combater. Como é conhecido, uma das manhas mais generalizadas do discurso populista é expressar factos que estão longe de representar a situação global de problemas a que se reportam, mas fazendo-o de modo a tomar o pormenor pelo todo irredutível.

Ora na Assembleia da República o senhor Ventura aplicou tal mecânica, recorrendo a um pretenso facto que já fora ouvido noutro tipo de testemunhos, aparentemente não identificados com a extrema-direita. A acusação é a de que há polícias e guardas a pagar do seu próprio bolso material, tais como por exemplo algemas e lanternas. Para o discurso populista despudorado não interessa se a eventual compra resultou de vontade de ter melhor material do que o fornecido pelas duas instituições ou de uma efetiva carência de material. Não interessa ao discurso. O que é relevante é lançar no ar a evidência, independentemente do rigor com que se afere a incidência da mesma.

Incompreensivelmente, dado o político experiente que é, António Costa foi no logro e até ironizou com o facto do senhor Ventura precisar de mudar de informador, pois estaria melhor informado. Claro que uns dias depois, como seria previsível, o senhor Ventura lá apareceu com umas faturas de putativas compras de material e aproveitou para chamar mentiroso ao primeiro-Ministro. Exemplar do que vai ser a continuada exploração deste tipo de casos e esperemos que não seja exemplar também do ponto de vista das respostas políticas que esta manha despudorada precisa. Claro que tudo isto foi pensado numa onda de progressão tendo em vista os acontecimentos de hoje à tarde.

O dia de hoje não foi importante pelo facto de se ter realizado a manifestação. Foi-o antes pelo facto de nunca como hoje ter sido nítido o confronto a que assistiremos entre a ação reivindicativa e institucional de sindicatos da PSP e de associações de profissionais da GNR e o tal movimento inorgânico (muito mais orgânico do que parece) com o senhor Ventura a protagonizar este último, com direito inclusivamente a guarda pretoriana.

Acho que é difícil haver algum político que consiga garantir que um polícia ou guarda sequer não tenha sido obrigado a comprar material por sua conta para assegurar o bom exercício da sua arriscada profissão nos tempos que correm. Por isso, a resposta ao provocador não pode ser do tipo da que António Costa ironicamente usou na Assembleia. Além do mais, parece não haver um português que seja que duvide da degradação efetiva do exercício concreto e diário da profissão das forças de segurança. Bem pode o Governo puxar galões pelo que de inversão de situação terá conseguido concretizar nestes últimos anos de geringonça. Mas a verdade é o que estado de degradação salta aos olhos de um vulgar mortal. Temos aqui uma das tais situações que exige um tratamento de pinças. Todo o erro de abordagem capitalizará o despudor fraudulento dos senhores Ventura deste país, mais do que boa mas incauta gente apregoa.

Para culminar todo um dia negro na disseminação dos valores populistas em Portugal, um contraído ministro Cabrita veio às televisões também em horário nobre apelar às forças sindicais e associativas institucionais o reforço do diálogo institucional. O problema é que tais forças institucionais vão começar elas próprias a ver o seu chão de representatividade começar a ficar menos seguro, o que significa que o diálogo institucional desejado poderá ser a dois, mas na prática haverá sempre uma outra, cavalgada pelo populismo, seja o senhor Ventura ou outro facho qualquer a querer comandar.
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Temos de ter muita cautela com a tese de Portugal como um oásis em matéria de fenómenos populistas.

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