(Tenho de confessar que,
agarrado ao IPAD, vivi com drama e depois com júbilo a espantosa final dos Libertadores
no Monumental de Lima. Não apenas porque o espetáculo
futebolístico era do melhor com uma ambiência que nem o mais assanhado estádio
europeu consegue criar. Mas também porque aí se vivia a catarse de um
personagem com o qual podemos não criar empatia, mas que é incontornável para
quem queira ver o futebol para lá do seu imediatismo e impulsos irracionais,
Jesus de seu nome, com a marca da Amadora.)
Os
treinadores de futebol dividem-se em dois grandes grupos. O primeiro é composto
por gente estudiosa, que levou a formação a níveis muito elevados e que a
desenvolve cruzando essa formação com a leitura da experiência do jogo e da
condução de equipas, de jogadores e do coletivo que prepara a equipa. O segundo
parte da experiência do jogo e tenta obter na formação o enriquecimento de que
necessita para tentar que a sua experiência ganhe alguma distanciação face ao
apelo concreto do jogo. O primeiro e o segundo grupo apresentam vitoriosos e falhados.
Os que enriqueceram a sua formação nem sempre conseguem criar as condições concretas
para aplicação virtuosa e ganhadora dos seus ensinamentos. Quanto aos que se fizeram
na experiência, há muitos que não conseguem dar o alto para se distanciarem do
que viveram e gerir com êxito a exploração de novos mundos que exigem não apenas
a reprodução do que alguma vez aplicaram noutras circunstâncias.
Jesus é
um treinador que está claramente mais próximo do segundo grupo, mas que, a partir
de uma vivência absorvente e quase obsessiva, foi construindo na diversidade da
experiência uma ideia de jogo, diria construindo uma teoria que talvez nunca
tenha conseguido formalizar como algo de transmissível. A sua teoria de jogo é
construída numa socialização de grande proximidade e rigor com os jogadores.
Podemos
questionar a personagem e nem sequer com ela criar um mínimo de empatia que
seja. Podemos desancar na sua literacia para além dos muros do futebol. Podemos
até verberar algumas pontas de uma arrogância tonta e despropositada que passa
por vezes pela maneira como ele verbaliza o antes, o jogo e o depois. Mas não
podemos ficar indiferentes à forma como ele prepara as equipas e ao tipo de
futebol que consegue imprimir sobretudo em termos de dinâmica de jogo.
Tem
vulnerabilidades? Seguramente que sim, como o vimos ontem em 60 minutos de
futebol opressivo do River, que bloqueou toda a teoria de desenvolvimento do
jogo do Flamengo e o reduziu durante largo a uma inépcia atacante. Mas seria impossível
uma teia tão opressiva como aquela que foi montada pelo River aguentar-se
durante 90 minutos. E, quase em três minutos, a teia opressiva que manietara o jogo
de Jesus desfez-se, duas substituições deram o balanço necessário e a reviravolta
vinda dos confins da alma do Flamengo consumou-se com Gabigol ele próprio a regressar
a um estatuto que o levou ingloriamente à Europa. Jesus concretizou a sua
catarse, esconjurou tramas, traumas e maus presságios e dificilmente será o
mesmo depois de toda esta exposição. Atingir essa catarse em cerca de quatro
meses e devolver ao imenso Flamengo de Zico e outras lendas o seu prestígio com
a praticamente simultânea conquista da Libertadores e do Brasileirão é obra,
que não é para qualquer um.
Dá um
certo gozo ver um português não canónico mas destemido a reensinar os brasileiros
a jogar futebol. Só o futebol nos permite reinventar o curso da História.
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