quinta-feira, 28 de abril de 2022

UMA VELHA QUESTÃO: VENCERÁ O COLETIVO OU O INDIVIDUAL?

Não posso deixar passar aqui em claro aquele que foi o espetáculo da semana, do mês e do ano em termos desportivos: a primeira mão da meia-final da Champions, disputada entre o Manchester City e o Real Madrid e terminada com um magnífico 4-3 após alguns golos do outro mundo (como os de Vinícius Junior e de Bernardo Silva, assim como os dois de Karim Benzema). Um hino ao futebol ou futebol no estado puro, conforme preferirem, eis o que foram aqueles mais de noventa minutos de um jogo que ficará definitivamente na memória de todos quantos souberam apreciar o misto de esplendor físico, pura magia e recorte técnico-tático que encheu literalmente o terreno sem que sobrasse qualquer tempo para respirar. O grande jornal espanhol da especialidade (“Marca”) referiu, muito justamente, que o Real saiu vivo de Manchester, recuperando por três vezes de uma diferença de dois golos (Milagro a Milagro) e deixando o apuramento em aberto para a próxima semana no Bernabéu (que “terá a última palavra”); assim foi, de facto, mas a ideia que ficou não deixou de ser a de um City mais bem trabalhado e oleado (embora também recheado de individualidades) perante um Real composto por um conjunto de individualidades a funcionarem relativamente menos em termos coletivos ― ou seja, se nada de essencial mudar na Quarta-Feira, o City seguirá para uma provável final com o Liverpool (que parece ir passar com alguma facilidade o Villarreal); mas como a lógica em futebol é, frequentemente, bem mais do que uma batata...


ONDE É QUE JÁ VI ISTO?

(Num dos últimos posts e apoiando-me na capacidade pedagógica de Paul Krugman, deixei o alerta de que em matéria de inflação ainda não estamos naquela maléfica situação em que os preços sobem porque as expectativas formadas assim o determinam. Por isso, o cartoon abaixo reproduzido, com a qualidade habitual a que a New Yorker nos habituou, embora sedutor, é apenas isso, uma peça de humor. Para além disso, vai sendo publicada informação mais analítica que nos permite compreender melhor o encadeamento observado entre a chamada inflação COVID e a gerada nas disrupções da guerra, que pensávamos afastada para sempre do rosário de condições inflacionistas. E uma sensação estranha instala-se, pois os resultados apontam para uma regularidade: salários e lucros não são igualmente atingidos pela inflação.)

                                      ("While you were deciding, we raised our prices", New Yorker)

Josh Bivens analisa no blogue do Economic Policy Institute os contornos analíticos da inflação COVID na economia americana, considerando o encadeamento observado entre os efeitos pandémicos e os da guerra da Ucrânia, complicando assim o que já era demasiado complicado, dada a incidência registada na economia mundial.

O gráfico que abre este post permite comparar dois períodos, o longo período de 1979 a 2019, ou seja o que se iniciou após as perturbações estagflacionistas dos anos 70, e o período que vai do segundo trimestre de 2020 (já acusando os efeitos pandémicos) e o quarto trimestre de 2021, mesmo antes do Senhor Putin invadir despudoradamente a Ucrânia.

Os resultados são surpreendentes, num modelo que divide os aumentos de preços unitários no setor não financeiro da economia americana em três tipos de impulsos: os do crescimento dos lucros, do crescimento dos custos dos fatores de produção que não o trabalho e o crescimento dos custos unitários em trabalho.

O longo período até à pandemia regista um contributo relativamente anémico do crescimento dos lucros para os aumentos de preços (não esquecer que a parte final do período foi um período de zero lower bound e de inflação abaixo da meta dos bancos centrais de 2%). Pelo contrário, o crescimento dos custos unitários em trabalho surge com a parte de leão desse aumento (quase 62% do crescimento de preços é-lhe imputado).

A situação muda radicalmente no período mais recente, invertendo-se radicalmente as proporções do contributo explicativo. Quase 54% do crescimento dos preços é agora devido ao aumento de lucros e apenas 8% é imputado ao crescimento dos custos em trabalho, observando-se também um contributo mais elevado dos custos de fatores de produção não associados ao trabalho (o indicador que temos mais próximo dos efeitos das disrupções das cadeias de valor mundiais).

Bivens interroga-se sobre este registo analítico, pois não é crível que apenas em dois anos as condições de concentração do poder empresarial se tenham alterado decisivamente. Trata-se de uma questão que já pesa nos fatores de desigualdade das economias avançadas já há algum tempo, pelo menos com maior clareza depois da Grande Recessão de 2008.

O economista americano avança com uma explicação curiosa. Até aqui, o poder da concentração empresarial e também da procura de trabalho traduzir-se-ia no rebaixamento de salários (cuja evolução foi largamente inferior à da produtividade na economia americana), passando agora a manifestar-se no seu poder de indução de aumento dos preços. Bivens sugere, assim, que esta informação emerge pouco compatível com a ideia de inflação determinada apenas por um forte sobreaquecimento da economia como um todo. A evidência anterior aponta para que quando o desemprego começa a diminuir a importância dos rendimentos do trabalho tenda a aumentar, o que parece não se verificar nesta recuperação pós-COVID, abruptamente interrompida pelas sombras da guerra.

Bivens compara mais em pormenor as recuperações observadas a partir da Grande Recessão de 2008 com esta recuperação mais recente e consegue perceber que nos primeiros trimestres de recuperação após 2008 também se registou o fenómeno da queda do peso dos rendimentos do trabalho. A diferença está em que o poder empresarial concretizou-se mais em supressão de salários do que em subida de preços, em grande medida também facilitado pelo peso do desemprego após a Grande Recessão. Não parece haver evidência de que tenha aumentado o poder da concentração empresarial (não haveria tempo para tal). Antes parece ter havido uma alteração da forma desse poder se manifestar.

A recuperação pandémica parece ter coexistido, relativamente à de 2008, com menos desemprego e procura mais elevada (a substituição da procura de serviços por procura de bens duradouros foi o traço dominante dos confinamentos), o que associado às disrupções de oferta mundial explica a chamada inflação COVID.

Neste contexto, não se compreende, antes se lamenta, o coro de virgens ofendidas e vitimizadas que se levantou contra a ideia de impostos sobre lucros excessivos temporários. Bivens arruma muito bem esta questão: “Suportar um imposto desse tipo não significa que um aumento súbito do poder empresarial seja a raiz principal da atual inflação, mas significa apenas que as decisões empresariais de fixação de preços tomadas num contexto distorcido pela pandemia são um propagador da inflação. É também um reconhecimento de que as subidas bruscas de preços em muitos setores relativamente ao ano anterior não devem ser entendidas como sinais úteis de mercado sobre os caminhos para a reafectação dos recursos na economia deve ser orientada; pelo contrário, são apenas um desajustamento de curto prazo entre a procura setorial e a oferta que tenderão naturalmente a desaparecer à medida que a economia global normalize depois da pandemia”.

Bem escrito.

O que é particularmente perturbador é que com o desemprego a descer o peso dos salários no rendimento e os salários reais estejam a descer na recuperação.

Claro que o fantasma da guerra, ao encadear-se com toda esta questão, exige prudência e continuidade de aprofundamento no seguimento das tensões inflacionistas.

É o que modesta e pedagogicamente temos feito com as ajudas certas e pertinentes.

Nota final:

Não pude deixar de recordar a máxima de Kalecki com que atormentava os alunos de crescimento económico, discutindo a economia post-keynesiana em economia fechada: "Os trabalhadores gastam o que ganham, enquanto os capitalistas ganham o que gastam".

 

O(S) NOSSO(S) ENDIVIDAMENTO(S)

Como é periodicamente habitual, o FMI atualizou por estes dias as suas previsões internacionais. Um dos dados que continua a ser bastante penalizador para o nosso lado é o do endividamento público, indicador que nos coloca no 12º lugar dos países mais endividados do mundo. Para recuperarmos um pouco do que foi a escalada que nos trouxe até aqui, recorde-se no quadro acima que passamos dos 60% de 2002, valor a que estávamos obrigados por efeitos de adesão ao Euro, para os 114,4% no ano do resgate (2011), ao que se seguiu um continuado agravamento até 2014 (132,9%), ligeiras melhorias posteriores (116,6% em 2019), uma nova subida decorrente do surto pandémico (135,2% em 2020) e alguma recuperação nestes dois últimos anos (sendo de 121,6% o valor estimado atual). Estonteante e verdadeiramente impressionante!

 

Mas insisto, consciente da repetição da ideia mas também da relevância da sua divulgação cada vez mais generalizada: o problema português de endividamento não é apenas público, o que pelo menos lhe daria um foco bem específico, mas é de caráter alargado a todos os setores institucionais, ou seja, às empresas e às famílias. Pese embora o facto de estas dívidas privadas, após terem estado a um nível próximo da pública em meados da década passada, apresentarem uma tendência decrescente mais acentuada, apenas interrompida pelos efeitos incontornáveis da pandemia. Ainda assim, a tripla dimensão do endividamento e as suas magnitudes ficam aqui claramente patentes, mostrando quão justificáveis serão novas e mais finas incursões na matéria (a exemplo do que aqui fizemos no passado).

quarta-feira, 27 de abril de 2022

UM BELO TESTEMUNHO

(Este blogue não foi inicialmente concebido para ser animado apenas por estas duas boas almas que há algum tempo protagonizam e animam este espaço de reflexão. Foi pensado admitindo, não sabemos se ingenuamente, mas isso também não vem ao caso, para integrar outros escribas, nem que fosse pontualmente. No registo do pontual, ainda conseguimos reunir alguns contributos de gente que estaria seguramente feliz neste espaço, como, por exemplo, a Paula Guerra, o Luís Carvalho, a Ana Barroco e creio que o José Portugal. Por uma razão ou outra, essa possibilidade gorou-se. Por isso, trago por vezes algum texto de gente próxima, que tem os seus próprios espaços de comunicação e reflexão. É o caso do Professor Leonardo Costa, cuja capacidade reflexiva de integração da política e do território não abunda por aí e que tenho orgulho em ter no meu círculo mais restrito de amigos.)

Assim, fiel aquele princípio anteriormente referido, aqui estou, obviamente com a sua permissão, a reproduzir aqui um excelente texto publicado no FORUM DEMOS (link aqui).

O texto chama-se “Acerca dos amanhãs cantantes do neoliberalismo” e tem o fascínio adicional de começar com uma pintura de Vieira da Silva e um poema de Sofia de Mello Breyner Andresen. Estamos por isso em excelente companhia.

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in ‘O Nome das Coisas’ – 1977

 

“Em Portugal, cada vez que se comemora o 25 de Abril de 1974, há quem queira também comemorar, por boas razões (dá-se o benefício da dúvida), o 25 de novembro de 1975. A comemorar o 25 de Novembro de 1975, um contragolpe, considero que dever-se-iam também comemorar o 28 de Setembro de 1974 e o 11 de Março de 1975, outros dois contragolpes. É que foram estes três contragolpes que, no seu conjunto, permitiram a consolidação da democracia portuguesa. Clubes à parte, é capaz de ser mais simples ficarmos pelas comemorações do 25 de abril de 1974, o dia inicial em que a poesia esteve na rua.

Vem o acima a propósito dos amanhãs cantantes do neoliberalismo. Em democracia, os indivíduos são livres de escolherem os amanhãs cantantes que entenderem. Os amanhãs cantantes do comunismo prometiam um sol a brilhar para todos nós. Sol Enganador, as mais das vezes, à luz da experiência histórica. Já os amanhãs cantantes do neoliberalismo (que não é novo nem é liberal) prometem, no presente, uma vida às novas gerações pior do que aquela que as gerações mais velhas tiveram ou têm tido. Ou seja, no presente, o neoliberalismo nem se quer faz o esforço de ser uma utopia. É uma distopia!…

Como afirmava a primeira ministra do Reino Unido nos anos 1980s do século XX, Margaret Thatcher (uma das grandes referências políticas do neoliberalismo), [para o neoliberalismo] não existe sociedade, apenas indivíduos. Indivíduos deixados à sua sorte, acrescento. Indivíduos que não pautam a sua atuação pelo princípio moral da simpatia de Adam Smith. Muito pelo contrário, pautam a sua atuação pelo princípio imoral da ganância, dedicando uma boa parte do seu tempo a extrair rendas à sociedade e a colocar as mesmas em paraísos fiscais.

Desde os anos 1980s do século XX, o neoliberalismo mais do que cumpriu com as suas promessas. Abandonou cada um à sua sorte, promoveu o individualismo metodológico e o princípio imoral da ganância, desregulou os mercados, em particular, os mercados financeiros, e trouxe dinâmicas de crescimento à desigualdade que colocam os países do mundo, também os países da OCDE, a caminho do antigo regime e/ou de sociedades do tipo patrimonial, não meritocráticas. Pelo caminho, gerou a crise financeira global de 2008 e, a seguir, suportou o salvamento incondicional do sistema financeiro desregulado a que deu origem, à conta do erário público. Um sistema financeiro que se posiciona algures entre o casino e o mundo do crime.

A sociedade em que vivemos, construída nos últimos quarenta anos, é um fruto das ideias neoliberais. E se a mesma está mais vulnerável a extremismos, como os da extrema-direita nacionalista e xenófoba, às ideias neoliberais o deve. Por outros palavras, foi o neoliberalismo que alimentou a ascensão da extrema-direita nacionalista e xenófoba em todo o mundo, ao preferir, nas suas palavras, o mercado imperfeito ao regulador perfeito, ao promover a ganância como uma coisa boa, ao fomentar a crescente desigualdade, ao colocar os indivíduos contra o Estado democrático, ao descredibilizar as instituições democráticas e do Estado, ao emprestar recursos financeiros a estas forças políticas extremistas, nacionalistas e xenófobas, por via dos paraísos fiscais que patrocinou. Foram as ideias neoliberais que colocaram as sociedades democráticas à beira do abismo. Insistir nas mesmas, é dar um passo em frente. É a receita para o desastre civilizacional.

É assim necessário meter o neoliberalismo na gaveta, em nome da preservação de uma sociedade democrática e/ou civilizada. É preciso voltar a colocar as pessoas comuns no centro dos debates e dos projetos políticos. É urgente recuperar e repensar as nossas sociedades, com novas e renovadas ideias políticas (algumas da social democracia, outras da própria doutrina social da Igreja). É fundamental falar com as pessoas comuns e tornar as mesmas agentes políticos ativos do seu destino, individual e coletivo, em vez de meros espectadores das suas vidas, mais ou menos vulneráveis aos caprichos e manipulações de certas elites (políticas e económicas) sem escrúpulos. Territorialmente, é preciso reorganizar o Estado (europeu, nacional, regional e municipal) de maneira a exercer o princípio da subsidariedade até ao limite das possibilidades que o mesmo oferece. Por outras palavras, é necessário aprofundar a democracia, representativa e participativa”.

Leonardo Costa

Docente e investigador da Universidade Católica Portuguesa

Porto 26 de Abril de 2022.