quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O LIVRO DO FEFÉ VEIO AO PORTO

Foi com grande prazer que fiz parte do grupo de apresentadores, ontem na Universidade do Porto, do livro de memórias de Eduardo Ferro Rodrigues, “Assim Vejo a Minha Vida”. A amizade que me liga ao Eduardo há cerca de cinquenta anos terá justificado o convite, no quadro de uma divisão do trabalho a três que, embora algo heterodoxa a vários títulos, julgo ter funcionado.

 

No que me tocou, e depois de ter louvado a editora pela imposição de uma bela capa azul-e-branca a um confessado apaixonado sportinguista (do que o livro nos fornece inúmeras comprovações), comecei por registar a minha satisfação por ter ali encontrado um Eduardo bem com a vida (alijando as piores tendências pessimistas que o definem, ele próprio sempre se confessando em luta constante para se afastar da máxima “tristeza não tem fim, felicidade sim”, e a sua proverbial atitude de “trombalazanas”, usando uma amigável expressão de seu pai) e até talvez excessivamente adocicado face à imagem que construiu, revelando-se quase crente na bondade no género humano quando recupera para a página de abertura do seu livro uma passagem do “Livro do Desassossego” que termina afirmando que “devemos ter, uns para os outros, uma amabilidade de viagem”. Irreconhecível este Eduardo, mas ainda bem!

 

Depois, e num parêntesis algo mas localista e personalizado, dei conta do momento em que o conheci (quando ele foi um ativo fundador do MES, período que descreve assim: “estavam lá alguns exilados que já tinham regressado, as pessoas dos sindicatos e do movimento estudantil, os advogados amigos, todos em busca de uma alternativa política que não fosse o PCP nem o PS”) e dos vários momentos de partilha que fomos tendo ao longo da vida (p.e.: dos trabalhos do GEBEI em Paris ― onde eu fazia o meu doutoramento no quadro do CEPII e fui, com o meu amigo Guilherme Costa, parte do grupo criado para acompanhar o estudo que ele fazia, com o José Manuel Félix Ribeiro e o Lino Fernandes, sobre a especialização internacional da economia portuguesa ― ao XIII Governo Constitucional liderado por António Guterres ― então jocosamente dito de “coligação” PS/MES com alguns independentes ―, dos tempos difíceis em que uma decisão de Jorge Sampaio levou à formação do Governo Santana Lopes e a que o Eduardo se demitisse da liderança do PS e o País assim tivesse perdido a oportunidade de ter tido um primeiro-ministro com as qualidades diferenciadoras que o caraterizam aos tempos duríssimos em que o nome do Eduardo foi associado ao processo Casa Pia e que assim sintetiza: “foram assim vários anos de angústia, sofrimento e desespero por não conseguir fazer entender que a verdade não assistia a caluniadores, a pasquins ou a magistrados mais ou menos alucinados”).

 

Por fim, e sem querer deixar de realçar de passagem o modo realista, e quase pueril, como é descrito o âmago da vida lisboeta e portuguesa dos anos 50 e 60 (os bairros e as vizinhanças, as casas e as famílias, o ambiente diário e as futeboladas, as escolas e os liceus, as férias e a compra do gira-discos, as viagens e a emancipação feminina...), referi-me à atual circunstância do “senador” já aparentemente afastado das lides mas ainda largamente atento e envolvido nas essências da defesa intransigente dos valores democráticos e do papel das ideologias, do interesse do País e da denúncia dos grandes males que o atingem e diminuem, do acompanhamento do modo como o seu partido interpreta, no poder ou na oposição, os rumos que se lhe afiguram como necessários ou imprescindíveis. Sublinhando, entre outras notas, algumas frases indiciadoras de um pensamento que se foi estabilizando desde que, há décadas, o Eduardo escolheu “estar no centro da esquerda” [referência a uma discussão com Félix Ribeiro sobre “se era mais importante para o país sermos a direita da esquerda ou a esquerda da direita”] e que sintetiza num “penso que no essencial me mantenho fiel a mim próprio” em resposta à seguinte interrogação: “e onde param os ideais da juventude, os sonhos do 25 de abril, as utopias do PREC, as causas que abracei?”.

 

Neste contexto, e após indiciar alguma polémica possível sobre a atual conjuntura, fixei-me na inquietação dos diagnósticos de fundo (“a razão da minha irritação [festival populista, de terra queimada e de ‘crisismo’ paranoico] vem de ter memória histórica”; “há um gosto amargo que experimentamos”, da abstenção ao justicialismo; “o fim das ideologias políticas (...) cria um vazio ocupado pelo primado da procura e da luta pelo poder, que passa a ter outras referências [reacionarismo, fanatismo, nacionalismo, menosprezo do outro, guerra]”; “o pragmatismo foi erigido em antídoto para o ideologismo, e assim foram sendo menorizadas ideias, valores, ideais, princípios”) e nos caminhos sugeridos de resposta (“antes da contradição entre esquerda e direita, há a oposição entre democracia e autoritarismo”; “só com partidos baseados em ideologias e sonhos se podem construir alianças realistas, efetivas e visíveis”; “os responsáveis políticos deveriam dar muito mais espaço à convergência que à luta pelo poder, ao que une contra o que divide os democratas, à necessidade de responder às aspirações dos cidadãos, em ter horizontes de melhoria social, de esperança no futuro, de justiça” / “uma resposta deste tipo [solução política de bloco central] não só se justifica, mas pode ser imperativa”). Para terminar dizendo que só quem não conhece o Eduardo é que crê na verdade intrínseca àquela sua referência quase final (“é da janela da minha casa que vejo Almoçageme, a aldeia, o casario, o mar, a vida”), sabedores como somos de que ele não irá nunca prescindir dos combates que o tornaram, também pelas suas caraterísticas pessoais de verticalidade e arreigadas convicções, na referência que hoje é para muitos portugueses, entre os quais me incluo.

 

Feito este breve relato, terminaria com duas notas sobre as excelentes intervenções dos dois outros convidados: Rui Rio, sublinhando quase sempre ter estado em lados diferentes dos do Eduardo mas colocando a tónica em dois pontos de convergência entre eles (a reforma dos partidos e a questão da Justiça em Portugal ― “em democracia não pode haver nenhuma Instituição sem escrutínio”), e Artur Santos Silva, louvando o contributo do autor para a construção do nosso Estado democrático e igualmente referindo a enorme ameaça para a democracia que vem do poder perverso da Justiça. Ambos referindo de passagem a sua inteira compreensão para com derivas políticas juvenis (“se não se tem a ideia de transformar a sociedade em novo, nunca mais se terá!”) e explicando as razões circunstanciais para a sua menor tentação nesse sentido.


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