quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

RELENDO HANNAH ARENDT

 


(Por estes dias, entre as exigências do trabalho e as consequências mais duradouras do que o esperado do estado virótico em que estive mergulhado, tenho aproveitado alguns momentos de pausa para reler Hannah Arendt, com destaque para o na altura e ainda hoje impactante “Eichmann in Jerusalem – a Report on the Banality of Evil”, numa edição da Penguin Books de 2016. Inicialmente publicado sob a forma de três artigos na inconfundível New Yorker, assumindo depois a forma de livro autónomo, trata-se de uma longa reflexão de Arendt gerada pela sua assistência ao julgamento do nazi Adolf Eichman em Jerusalem, com o governo de Israel presidido por Ben Gurion.)

 

Senti necessidade desta releitura a partir do momento em que se vive uma situação de asfixia de pensamento quando para muita gente não parece ser possível condenar vigorosamente o terrorismo tresloucado do Hamas e também criticar a violência da intervenção de Israel em Gaza e, não o esqueçamos, a insuportável pressão dos colonatos israelitas na Cijordânia perante uma indefesa população palestiniana.

Existe um universo sem fim de literatura sobre as ideias que Hannah Arendt levava na cabeça quando chegou a Jerusalem para cobrir o julgamento de Eichmann, designadamente sobre o que muitos consideraram ser juízos preconcebidos e nada abonatórios sobre os rumos que o sionismo estava a assumir. O mesmo se diga relativamente ao tom com que Arendt redigiu as três reportagens, incluindo expressões e interpretações que provavelmente a própria Hannah não desdenharia ter alterado, sem perder o fio condutor da sua argumentação.

Num prefácio bem interessante que Amos Elon redigiu para a edição da Penguin que normalmente utilizo, aí se procura identificar as razões para a reação de forte animosidade e de tentativa de cancelamento que a prosa de Arendt suscitou na comunidade judia, primeiro nos EUA com uma campanha de cancelamento da escritora e jornalista e depois também em Israel, neste caso contrariando as reações iniciais positivas que a obra suscitara.

A banalidade que Arendt atribuía à personalidade Eichmann chocou fortemente com a ideia predominante na época de associar os horrores do holocausto a monstros e a gente demoníaca e foi rapidamente classificada como uma banalização dos horrores do próprio holocausto. A tese de Arendt rejeitada pela sociedade israelita interna e na diáspora apontava para a transformação do mal que o nazismo conseguira numa espécie de norma civil, seguida e respeitada sem qualquer juízo crítico. A transformação da perceção do mal profundo que os nazis tinham conseguido introduzir na sociedade alemã justificava que personagens banais como Eichmann pudessem ter sido responsáveis pelas mais profundas atrocidades, contrariando a visão popular dos monstros.

Aspetos menos debatidos como a acusação de que a ação exercida pelos Conselhos de Judeus (Judenräte) foi fatal para proporcionar o extermínio em massa, não comunicando à população judia indefesa informação que lhe permitisse fugir atempadamente ao holocausto, foram também decisivos para justificar a animosidade suscitada pela obra. Mas nessa matéria, Arendt nem sequer é original pois existem antes da publicação da obra inúmeros testemunhos que mostram a conivência de tais concelhos com as pretensões dos nazis.

Ninguém talvez imaginasse que a obra de Arendt fosse tão revisitada em 2023, como já o tinha sido em décadas anteriores, sempre que a questão israelo-palestiniana se intensificasse. No meu caso, é uma reação espontânea para melhor respirar neste ambiente de cancelamento. Não faço a mínima ideia de qual é o estado da arte da sociedade israelita mais avançada em matéria de reação à obra de Hannah Arendt. Admito que entre os ultras que dominam o governo de Nethanyau continue a ser uma obra proscrita. Pela minha parte, acho que enquanto o problema da marginalização inaceitável da população palestiniana se mantiver, a obra de Arendt continuará a ser relida como um lenitivo e um guião para compreender o presente. Há obras que, pelos piores motivos, serão eternas.

 

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