sábado, 30 de dezembro de 2023

LEITURA OBRIGATÓRIA

Sylvie Kaufmann (SK) é uma jornalista francesa, prestigiada editora e colunista no “Le Monde” mas que também nos aparece frequentemente assinando artigos de opinião no “Financial Times” e no “New York Times”. Publicou neste último Outono um livro que não posso deixar de referenciar pela sua atualidade (no sentido de contribuir para uma melhor compreensão dos oscilantes caminhos tático-estratégicos que conduziram à plena irrupção de comportamentos expansionistas por parte da Rússia) e pela denúncia das persistentes responsabilidades franco-germânicas no branqueamento de um Putin que de há muito vinha dando sinais de manifesta instabilidade e perigosidade (levando a uma interrogação fundamental sobre as razões pelas quais a União e os principais países europeus foram quase alegremente ignorando as sucessivas manifestações do “método Putin” que o ditador russo praticava).

 

A obra é fascinante pelas suas meticulosas incursões factuais, sobretudo ao longo das primeiras décadas do século XXI, e pelos testemunhos recolhidos junto de alguns dos protagonistas dos momentos-chave que a autora tão claramente identifica. Alguns tópicos permitem-nos fazer toda uma nova luz (ou, pelo menos, consolidar toda uma assaz diferenciada perspetiva) em relação aos discursos oficiais que dominaram no que respeita ao Putin de todos aqueles anos. Alguém que se queria forçosamente encarar como colaborante e aberto a integrar a ordem internacional existente e não como alguém que pretendia encontrar as formas e os momentos adequados para “mostrar os dentes”, disso não se abstendo de deixar rastos (às vezes quase impercetíveis mas também frequentemente reveladores em outras ocasiões ― SK recorda, por exemplo, o contraste entre o muito amigável discurso de Putin de 2001 no Bundestag, falando em língua alemã, e o seu agressivo e já chocante discurso de 2007 no quadro de uma conferência sobre segurança realizada em Munique e perante a maioria dos líderes europeus, Angela Merkel à cabeça); revelações que foram sempre recuperadas pelos ditos líderes, imbuídos de uma lógica crente e tolerante (com um toque axiomático vindo dos tempos ainda próximos da queda do Muro de Berlim e dos anos de concórdia por ela inaugurados, isto para além das especificidades históricas das relações germano-russas que SK tão bem elucida nas páginas do livro) quanto ao que lhes era dado ouvir.

 

Mas aquele não terá sido o período de maior cegueira, i.e., das opções estratégicas mais inadequadas por parte de alemães e franceses perante o Putin ameaçador que ia emergindo, primeiro em face da “Revolução Laranja” na Ucrânia (2004) e depois perante os alastramentos democráticos que se iam afirmando e os possíveis alargamentos da NATO que se iam equacionando. O pior aconteceria a partir da Cimeira da NATO em Bucareste (2008), na qual Merkel e Sarkozy bloquearam a proposta de Bush de abrir negociações de entrada na Aliança Atlântica da Geórgia e da Ucrânia; deixando os europeus, doravante entregues a si próprios (posicionamento que seria reforçado com a chegada de Obama) e tendo que presenciar logo de seguida a invasão da Geórgia (2008) ― as páginas sobre a atuação de Sarkozy na negociação do cessar-fogo seriam hilariantes se não começassem por ser trágicas ― e depois, impavidamente, a invasão da Crimeia (2014). Merecendo ainda uma atenção especial o relacionamento entre Putin e o chanceler alemão Gerhard Schröder (“une si belle amitié”), um figurão que entretanto se iria tornar um lobista militante em nome de interesses russos em geral e da Gazprom em particular (fantástica a descrição do modo como Putin estudou a sua personalidade e se preparou para o seduzir); um relacionamento que teve nos acordos russo-alemães do gás um dos seus expoentes maiores (“Nord Stream 2, l’erreur fatale”), conduzindo a uma dependência energética alemã tão gigantesca quanto cumplicemente alimentada por parte dos governos da CDU de Angela Merkel (um “enigma” e um “mistério” segundo a autora, que também se refere a um “tandem paradoxal” entre a chanceler e Putin).

 

E por aí fora. O livro tem 450 páginas mas lê-se de um fôlego, sobretudo para quem o aborde depois de ter acompanhado o essencial da política europeia do pós-Guerra Fria mas já não tenha memória de alguns episódios ou não tenha podido reter na ocasião o alcance de certas decisões e de certos compromissos. Aqui deixo, pois, esta sugestão de leitura, com a garantia de que não tratei neste post de muito do melhor que encontrarão ao percorrerem as páginas de um livro que, não sendo analiticamente ou concetualmente vincado, esclarece e elucida, ajudando a recuperar elementos perdidos e a reinterpretar avaliações e tendo ademais constituído para mim uma enorme fonte de prazer.

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