domingo, 31 de dezembro de 2023

O QUE TEM HOJE O COSMOPOLITISMO PARA OFERECER?

 


(O ano de 2023 caminha para o seu fim e deixou atrás de si uma onda de recriminações que alimentam o fogo do populismo e que têm alguns inimigos de estimação. A frente de matérias que protagonizam esse mal-estar e a adulteração dos valores democráticos com a estranha bênção aos partidos de extrema-direita é vasta e diversificada. O ódio às elites, aos migrantes vistos como a fonte de todos os males, aos liberais, minorias e aos experts e especialistas e muitas vezes à própria ciência, tem a cereja no bolo na rejeição do cosmopolitismo. O nacionalismo reacionário congrega e acolhe esses ódios e é entendido pela generalidade dos seus apoiantes como um abrigo seguro. Mas se quisermos ser analiticamente rigorosos, podemos perguntar o que é que a aliança cosmopolita, liberal e técnica e cientificamente informada ofereceu de alternativa às pessoas seduzidas pelo nacionalismo mais retrógrado. Por outras palavras, porque é que essa aliança, qualquer que seja a forma política que apresente, não conseguiu convencer essa população que alimenta o movimento da suspeição democrática? Porque é que os seus argumentos sucumbem ao ódio nacionalista, xenófobo e claramente anti-cosmopolita?)

Sabíamos desde o BREXIT que não foi a Londres metropolitana e cosmopolita que o votou. Uma grande maioria nessa Londres metropolitana e cosmopolita votou pela permanência na União Europeia. Foi antes a população mais velha e ainda sensível aos apelos do Império que o decidiu, revelando uma enorme separação entre esses dois Reinos Unidos. A derrota do cosmopolitismo globalizante no BREXIT foi também a derrota das elites mais internacionalizadas, largamente identificadas com a praça financeira.

Martha Nussbaum (The Cosmopolitan tradition - a noble but flawed ideal, Harvard University Press, 2019) lembra-nos que a origem da palavra, Kosmopolitês, significa nada mais nada menos do que cidadão do mundo e que na Grécia antiga Diógenes foi talvez o primeiro a identificar a sua origem como um cidadão do mundo. Ou seja, identificando-se com uma característica que pode ser partilhada com todos os outros seres humanos, homens e mulheres, gregos e não gregos, escravizados ou homens livres. Mas como sabemos essa propensão para nos identificarmos com o que partilhamos com os outros colide com os fatores de identidade que nos dividem, onde nascemos, o estatuto, a classe e o género.

Desde o BREXIT, as tendências pesadas que ele anunciava foram-se reforçando. E pode mesmo dizer-se que as vitórias à tangente que algumas forças políticas sociais-democratas e liberais foram conquistando se deveram mais a princípios de barragem da extrema-direita nacionalista, retrógrada e xenófoba do que propriamente a um convencimento do eleitorado penalizado pela globalização. O geógrafo e pensador social Ash Amin refere no Social Europe com oportunidade que foi essa barragem de última instância e não a afirmação de que uma sociedade pluralista, aberta e democrática pode representar uma fonte de prosperidade e de bem-estar. E Amin interroga-se com perspicácia porque razão a emergência de uma cultura social progressista particularmente entre os mais jovens e as populações urbanas, materializada na afirmação de uma cultura de liberdade no plano do consumo e dos comportamentos sexuais não se traduziu no apoio e reforço da democracia liberal.

Há quem pense que esta revolução cultural progressista entre os mais jovens, mais propriamente entre os mais qualificados e abastados, não se tem traduzido no reforço das democracias liberais sobretudo porque essa camada jovem tende a afastar-se da política e dos seus representantes. Por conseguinte, nessa perspetiva teríamos por um lado uma base social jovem e qualificada potencialmente defensora da democracia a afastar-se da política e da sua representação e, por outro lado, a aliança liberal, cosmopolita e tecnicamente qualificada terá afastado também largas franjas da população, retirando-lhe bem-estar material, sentido de pertença a uma identidade nacional ou territorial e intensidade de VOZ na representação e defesa dos seus interesses.

Por exemplo, tenho para mim que a maioria absoluta do PS nas últimas eleições, largamente desperdiçada por diferentes razões já analisadas neste blogue, teve na medida do apoio ao transporte público, com preços excecionalmente atrativos de passes intermodais uma das grandes fontes do apoio popular que essa maioria absoluta representou.

Imaginem agora que essa medida revolucionária, socialmente, mas também do ponto de vista da sustentabilidade ambiental e da promoção do transporte público de larga capacidade, teria sido completada com um programa público de habitação de grandes dimensões para resolver a insolvência de procura de classes médias e desfavorecidas e também por um conjunto de medidas impactantes na destreza de resposta do Serviço Nacional de Saúde.

Alguém tem dúvidas que essa simples estratégia retiraria uma larga margem de população eleitora suscetível de ser atraída pela lengalenga da extrema-direita?

Pela minha parte não as tenho e tudo farei para que o PS possa apresentar-se a 10 de março de 2024 com a força dessa simplicidade de objetivos.

Historicamente, a deriva em que os partidos socialistas europeus caíram foi a de responder a essa tendência do eleitorado afastando-se da defesa e do reforço da esfera pública. O New Public Management foi uma dessas derivas, já que rápida e insidiosamente a defesa da melhoria da eficiência na gestão pública deu lugar a uma perda de relevância da esfera pública. Ao ceder alegremente essa relevância da esfera pública, essa tendência abriu caminho à ideia peregrina defendida pelas forças nacionalistas de que o ódio às elites, ao cosmopolitismo, às burocracias públicas e aos técnica e cientificamente qualificados é a forma mais adequada de restabelecer a comunicação com as populações, substituindo essas intermediações pelo justicialismo das redes sociais empolgadas.

Por isso, em meu entender, não basta sermos céticos quanto à utopia tecnoliberal da digitalização (Juan Arnau) e dos senhores dos algoritmos. Com objetivos simples e medidas concretas dirigidas ao bem-estar dos zangados com a democracia e seguidores temporários das tentações nacionalistas e retrógradas, é absolutamente necessário recuperar a ideia que as democracias liberais e abertas ao mundo estarão sempre em melhores condições de proporcionar prosperidade e qualidade de vida do que as sociedades fechadas e resistentes à mudança. Para que esse convencimento seja possível, é fundamental reforçar a esfera pública e não reduzir a sua expressão.

Nunca o tema central deste blogue foi tão importante.

A sua resistência a mais de 12 anos de escrita empenhada tem muito que ver com este princípio.

Boas entradas a todos e que, na medida dos vossos contributos possíveis, 2024 seja menos incerto e indeterminado do que se anuncia.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário