Desde as legislativas de 2022 que a política nacional se tornou ainda mais profundamente estranha do que o que já lhe era habitual. Porque, se 2015 já trouxera uma alteração muito marcante ― traduzida num governo liderado pelo segundo partido mais votado e apoiado parlamentarmente pelas forças políticas à sua esquerda (ademais com a feroz oposição do Presidente da República da época, Aníbal Cavaco Silva), essa chamada “geringonça” que foi o expediente que António Costa conseguiu encontrar para lograr atingir o poder (embora também tenha constituído um momento de respiração para uma sociedade traumatizada pelos efeitos da Troika e da sua interpretação maximalista por parte da dupla Pedro Passos Coelho/Paulo Portas) ― e se 2019 mais não acabou do que por corresponder a um período de transição imprescindível para maturar um divórcio anunciado à esquerda, 2022 trouxera-nos uma inesperada maioria absoluta largamente motivada por um sensato temor dos portugueses perante as perigosas aproximações que vinham do Chega e não eram suficientemente rechaçadas pelo PSD de Rui Rio. Uma maioria absoluta que António Costa viu cair-lhe no regaço e logo quis transformar no contrário do que começou por prometer, i.e., numa exibição de arrogância e poder absoluto em que nenhuma estratégia importava definir (a simples gestão do dia-a-dia bastava...), nada tinha que ser explicado em condições aos cidadãos e qualquer personagem que ele indicasse por sua livre e infundada recreação estava mais do que bem para o desempenho de qualquer tipo de responsabilidade e função. Neste quadro, e com Marcelo sempre à ilharga de modo frenético, o fim da maioria absoluta era uma questão de tempo e esse foi reduzido ao ano e meio mais inconcebível da história democrática nacional (a ponto de quase fazer com que a anterior passagem de Santana Lopes parecesse assemelhar-se à de um primeiro-ministro normal), incluindo o acrescento de um negacionismo tão incompreensível que ficará a marcar o essencial do exercício governativo de Costa.
No ano que agora termina, e após a revelação de finais de 2022 sobre a indemnização de 500 mil euros à ex-administradora da TAP Alexandra Reis, o prato forte da nossa política esteve na demissão de Pedro Nuno Santos, nas Comissões de inquérito, nos sucessivos e lamentáveis episódios associados a João Galamba (até à sua saída de cena, não sem algumas desnecessárias provocações autorizadas pelo primeiro-ministro), tudo culminando na “Operação Influencer” que conduziu à demissão de Costa e ao derrube do Governo. A mensagem natalícia deste foi mais do que demonstrativa do que o principal protagonista deste ciclo de oito anos entende ser a sua elogiável herança (a reposição de rendimentos, a diminuição da dívida pública e as “contas certas”, o aumento da qualificação dos portugueses e a ação em termos de mudança energética) e/ou faz por disfarçar/esquecer da mesma (o caótico estado da educação, da saúde, da habitação, da administração pública e da justiça, muito deste não sendo mais do que a outra face da moeda das ditas “contas certas” ― a merecerem, aliás, uma análise mais circunstanciada, seja no que toca ao nefasto impacto das cativações de Centeno e Leão no investimento público e no agravamento dos serviços públicos ou no que toca à presença de dominantes contributos laterais ou não estruturais, do papel viciante dos fundos europeus à inflação, nos resultados alcançados). Mesmo não ignorando a sua necessidade de se autodefender, até para preparar algum novo futuro pessoal, e a sua inequívoca e justa vontade de entalar Marcelo, o que só poderá acontecer com uma próxima vitória eleitoral do PS, este curto discurso de despedida teve laivos de patético (entre o “muito trabalho em curso que não podemos parar” e um disco estragado com um repetitivo uso das palavras “juntos” e “confiança” e “a certeza de que os portugueses continuarão a fazer de cada ano novo um ano ainda melhor”), sobretudo porque vindo de alguém que desbaratou em meses uma maioria absoluta que lhe foi entregue de mão beijada e que bem teria carecido de ser abordada com mais competência e outro zelo e sentido profissional. Não sei, digo-o aqui de passagem, se os ideólogos da campanha socialista que se avizinha insistirão em que Pedro Nuno Santos assuma por inteiro o legado de Costa, talvez até que tal possa ser aconselhado pelos Paixões Martins da nossa praça e vir a render dividendos junto de uma população cada vez mais despolitizada e desinteressada, mas eu, inocentemente, não iria por aí a bem do País e da verdade que a urgência da sua transformação reclama.
Isto dito, assim deixo justificada a minha escolha para acontecimento nacional do ano, a de uma maioria absoluta miseravelmente delapidada por António Costa; um primeiro-ministro em fim de festa mas que chegou a exibir ao longo dos meses o pior em termos de arrogância democrática, de ausência de proposta e de “otimismo irritante”; um líder socialista que, diga o que disser e jure o que jurar, ainda conseguiu acrescentar ao seu rotundo falhanço político o facto de ter visto suceder-lhe à frente do PS o único “delfim” que não desejava que viesse a ser secretário-geral e que sempre procurou torpedear nesse sentido. Quanto à outra escolha normalmente referenciada nesta ocasião, a da personalidade nacional do ano, ela tem necessariamente de ir para a Justiça (et pour cause...) e, em particular, para a trapalhada armada por Lucília Gago (a procuradora nomeada por opção conjunta de Costa e Marcelo), desta vez rebentando através de um mero parágrafo com a estabilidade política do País; apesar de a nossa comunicação social, sempre tão solícita e compreensiva em relação a Marcelo, parecer ter tendência para voltar a indicar o nome deste, o certo é que ele, por muito poder formal de que disponha, já não passa de um epifenómeno que pouco conta para a maioria dos portugueses.
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