sábado, 2 de dezembro de 2023

A POESIA DE BOLAÑO

 


(A Quetzal acaba de publicar numa edição de grande apuro estético a Poesia Completa do escritor latino-americano Roberto Bolaño, que constitui um evento de grande alcance cultural, tamanhã é a importância do escritor e da sua obra meteórica. Nascido no Chile e tendo a cidade do México como residência a partir dos 15 anos, Bolaño acabou os seus dias de uma vida relativamente curta na Costa Brava, Catalunha, produzindo uma sequência de obras revolucionárias, das quais Detetives Selvagens e 2666 são expoentes a que ninguém fica indiferente. Pelo que pude compreender das páginas iniciais desta bela obra e do excelente prefácio do escritor Manuel Vilas, o conhecimento da poesia de Bolaño é essencial para perceber o sentido último da sua obra, em que a sua obsessão pelos fracassados, falhados, perdedores, desenraizados, gente que parece ter morrido antes do tempo constitui a sua marca de água. Essa obsessão pelos angustiados que a leitura compulsiva do 2666 evidencia, não houve romance que tivesse lido com tanta avidez, só adquire pleno significado com a leitura desta poesia, por vezes sobre a forma de prosa.)

É muito curiosa a ideia de que só os poetas são incorruptíveis, sobretudo devido ao facto de não terem dinheiro, não terem nada, começando por ser o maior exemplo de despossuídos. A poesia segundo Bolaño emerge assim como uma forma de compreender a miséria e a promiscuidade que grassa no Terceiro Mundo, terreno fértil para a identificação de toda a série de perdedores e despossuídos.

Mas, apesar disso, capaz de nos proporcionar o lirismo de um Amanhecer à Bolaño:

“Amanhecer

Acredita, estou no meio da minha casa

à espera que chova. Estou sozinho. Não me importa

acabar ou não o meu poema. Espero a chuva,

enquanto tomo café e olho pela janela uma bela paisagem

de pátios interiores, com roupa estendida e imóvel,

silenciosas roupas de mármore na cidade, onde não há

vento e apenas se escuta ao longe o zumbido

de um televisor a cores, observado por uma família

que, a esta hora, também toma café reunida à volta

de uma mesa: acredita: as mesas de plástico amarelo

desdobram-se até à linha do horizonte e mais além:

até aos subúrbios onde estão em construção edifícios

de apartamentos, e onde um rapaz de 16 anos sentado sobre

tijolos vermelhos contempla o movimento das máquinas.

O céu no momento de pausa do rapaz é um enorme

Parafuso oco com que a brisa brinca. E o rapaz

Brinca com ideias. Com ideias e com cenas paradas.

A imobilidade é uma neblina transparente e dura

que lhe sai dos olhos.

Acredita: não é o amor que aí vem,

mas a beleza com a sua estola de almas mortas”.

Espero que vos desperte o apetite da leitura.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário