(A produção automobilística europeia, designadamente a de origem alemã, seja ela alcançada em território alemão, ou noutros territórios na Europa, caso da AutoEuropa em Portugal, tem representado até agora uma fonte segura de defesa dos valores da segurança, tecnologia e uma das mais claras manifestações da tradição industrial europeia, que já viveu melhores dias. A questão dos registos de emissões de gases com efeito de estufa, em cuja malha algumas grandes empresas como a Volkswagen foram apanhadas, caiu mal em algum público, já que a fraude não estava em linha com a velha tradição europeia da fiabilidade automóvel. Interpretações mais bondosas atribuíram então a deriva à ganância de alguns gestores, o que ajudou a conter os danos de reputação e fiabilidade. Entretanto, a penetração da economia verde na indústria automóvel, com a brutal ascensão das viaturas totalmente elétricas, veio transformar radicalmente as condições de construção da fiabilidade de uma marca automóvel. É que a densidade da tecnologia de uma viatura com motor de combustão não tem comparação com a de uma viatura elétrica, que na prática não é mais do que uma bateria com rodas. Assim, quem dominar a tecnologia das baterias, que representará cerca de 40% do preço de uma viatura elétrica, tenderá a dominar a indústria. Além disso, estamos no mundo da subsidiação pública, seja à produção de viaturas elétricas, seja ao seu consumo. Por mais de uma vez, insisti aqui na ideia de que a variável é essencial para compreender a adesão do público consumidor às viaturas elétricas. Ora, neste novo mundo, a Europa enfrenta um penhasco de dificuldades.)
A principal alteração observada em tempos mais recentes no mercado relaciona-se com a vertiginosa subida das exportações pela China de viaturas elétricas (VE). O gráfico acima mostra como no caso da Europa o número de VE importados supera o das VE produzidas em solo europeu, enquanto que a China e os EUA apresentam um maior equilíbrio de posições. No caso da vertiginosa subida de exportações chinesas de VE não podemos também ignorar a produção local da TESLA. Mas como Noha Smith argutamente o assinala, há uma grande diferença no modo como a Europa e a China apoiam a disseminação de VE. A Europa tem privilegiado os apoios ao consumo, procurando colocar os preços em faixas que não afugentem os consumidores ainda em estado de incerteza quanto às condições de enquadramento das suas compras, principalmente redes de alimentação. A posição chinesa parece mais inteligente – subsidia a produção, garante financiamento em condições muito competitivas e subsidia também a I&D empresarial no setor. Se acrescentarmos a esta mais inteligente modalidade de subsidiação, o facto da crise do mercado interno chinês estar a dificultar a absorção pela população local de VE, a exportação chinesa é a consequência inevitável e daí os mercados europeus estarem a ser invadidos por todos os BYD (marca chinesa mais atrativa) deste mundo.
Mas há ainda uma outra dimensão que mostra com clareza como a Alemanha e a Europa andaram distraídas, mais propriamente a ver passar os acontecimentos, sem quaisquer decisões para inverter o seu rumo. O problema é que a China controla praticamente toda a cadeia de oferta de baterias para VE, posterior à origem mineira da cadeia. Smith estima que a China disponha de baterias a um preço mais baixo em cerca de 33% do que está disponível para a produção de VE na Europa.
E assim estamos perante a ameaça de derrocada de uma indústria de grande maturidade tecnológica e organizativa na Europa, que pode precipitar mais um rombo no porta-aviões da industrialização europeia. Por isso, me parece que a União Europeia tem de tratar melhor a nossa capacidade industrial no têxtil e no calçado, por exemplo, porque essa sim, tem resistido a toda a série de “asiatizações”.
Como moral da história, retiro esta, que vem mais uma vez aclarar os malefícios do diretório europeu ortodoxo e liberal que domina há muito as instituições europeias, que levou inclusivamente a que o conceito de política industrial não pudesse ser pronunciado. Pois alguém imagina que continuar a subsidiar o consumo de VE vai resolver o cu de boi em que a indústria automóvel europeia esta mergulhada?
Ortodoxos liberais também existem nos EUA, mas estes são mais pragmáticos quando se trata de salvar o coiro. Esse pragmatismo permitiu o seu envolvimento com êxito na Segunda Guerra Mundial e a Europa agradeceu esse pragmatismo. Agora, esse pragmatismo manifestou-se de novo e o Inflation Reduction Act (estranhamento IRA de seu nome) e o Chip Act representaram duas poderosas medidas de política industrial, pronunciada com todas as letras.
O ensinamento americano está aí para todos verem.
A minha dúvida é se tantos anos de acéfala ortodoxia liberal não produziram já efeitos devastadores em termos de competências internas. Serão as autoridades europeias, para lá do blá blá dos princípios, capazes de conceberem um programa de política industrial voltado para a indústria automóvel verde, com a produção de VE como uma peça indispensável?
É uma boa questão à qual Madame Ursula deveria dar a atenção adequada e deixar de espiar as suas culpas alemãs pelo holocausto. Está simplesmente em causa um dos bastiões da industrialização europeia fiável.
Nota final
À ortodoxia liberal europeia recomendo vivamente a leitura do artigo de Réka Juhász, Nathaniel Lane e Dani Rodrik, "The new economics of industrial policy".
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