quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O FIM DE MACRON?

 


(Estive em aberto desacordo com alguns amigos à minha esquerda a propósito do significado da ascensão política de Emmanuel Macron. Perante o descrédito da Presidência do socialista François Hollande após as grandes expectativas da sua vitória eleitoral e não morrendo de amores pelo radicalismo de Mélenchon, pareceu-me na altura que a juventude, inexperiente é certo, de Macron poderia representar a melhor maneira de conter o avanço que para alguns parecia inexorável de Le Pen e seus seguidores. No tempo imediato, o meu juízo político revelou-se acertado. No que poderemos classificar de primeiro round, Macron surpreendeu em toda a linha uma desatinada Marine Le Pen que calculou mal a sua jogada e que antecipou ter diante de si um político que cobardemente recuaria nas suas posições para contrapor o eleitoralismo nacionalista da então ainda Frente Nacional. Macron derrotou nesse round Le Pen ultrapassando-a com uma defesa da Europa que surpreendeu tudo e todos e que deixou a política francesa num estado lastimável de desorientação. O primeiro round estava ganho mas o movimento político que sustentara Macron teria de fazer o seu caminho a partir do zero. Os socialistas reduziam-se à sua insignificância pós-Hollande e a direita francesa dos Republicanos e antigos gaullistas não vivia melhores dias. A partir daí, que talvez possamos considerar ter sido o apogeu de Macron, as dificuldades de afirmação do seu projeto político reformador foram constantes, direi mesmo penosas. A França é a pior sociedade possível para grandes reformas. A qualidade do seu Estado Social é inequívoca, mas o avanço das desigualdades internas introduz paradoxos relevantes na vida política. Para um observador exterior e apreciador do Estado Social francês a maior parte das reivindicações sociais soam a estranhas, mas as referidas desigualdades tendem a provocar uma dualidade social que se manifesta depois em movimentos como os Gilet Jaunes e o ódio e violência sociais que tais movimentos destilam tornam-se incompreensíveis para um descuidado observador externo.)

 

Compreende-se que a alavanca europeia deixou entretanto de funcionar para o contraponto de afirmação interna de Macron. A situação na Ucrânia e a guerra entre o Hamas e Israel transformaram por completo o contexto. Mesmo que a frente franco-alemã seja frequentemente invocada, a verdade é que o tandem Macron-Scholz parece perro, descontínuo e, pior do que isso, não convence uma França cada vez mais tentada pelo nacionalismo xenófobo de Le Pen.

Acresce que os erros políticos de palmatória de Macron se sucederam a uma velocidade impressionante, sugerindo que a sua Presidência estaria cada vez mais vulnerável e considerada cada vez menos fiável pela grande maioria dos Franceses.

A sua legislação de política fiscal ambiental, apresentada como sendo influenciada pela ideia de transição energética e climática, foi percecionada como sendo uma legislação para os ricos e sem a mínima sensibilidade relativa à França desigual e mais pobre que seria fortemente penalizada por essa legislação.

Uns tempos depois, a tentativa de reforma das pensões foi pelo mesmo caminho, embora deva dizer-se que as idades de reforma em França são um verdadeiro atentado à sustentabilidade de qualquer sistema. Começava, então, a ser visível que os Franceses não viam em Macron qualquer ideia de futuro que compensasse e permitisse racionalizar cedências no Estado Social.

Nos tempos mais recentes, começou a ser visível o sinal de maior fragilidade da afirmação política de Macron. A cedência aos impulsos populistas e xenófobos de descarregar na imigração as frustrações nacionais geradas por problemas não resolvidos como as carências de habitação social acessível a uma procura solvente, o isolamento perigoso de bairros populares, a violência juvenil, a queda abrupta do aproveitamento escolar na Escola Pública, o avanço da pobreza começou a germinar no pensamento de Macron e seus apoiantes. Ou seja, o exemplo de uma deriva que Macron contrariou no primeiro round de combate com Le Pen começou a instalar-se no macronismo. E como tenho repetido vezes sem conta, quando a cópia se confunde com o original, os eleitores preferem este último, ou seja preferem o nacionalismo xenófobo de Le Pen e do Rassemblement National. A extrema-direita não precisa de mexer uma palha, basta esperar com alguma paciência que a democracia se aproxime das suas convicções. 

Estas considerações não apagam a dimensão do desafio que paira sobre a sociedade francesa em matéria de integração de uma massa tão importante de população imigrada, com o islamismo à mistura e toda uma necessidade de convivência entre diferentes culturas.

Serge July escreve no Libération um artigo talvez premonitório do que nos espera em França. O prestigiado jornalista fala de uma nova divisa republicana que acrescente a ideia de laicidade à tríade liberdade, igualdade e fraternidade. Mas, entretanto, sem qualquer projeto sensato de resposta à integração necessária de uma população imigrada cada vez mais importante, com os africanos à cabeça, as simples divisas, por mais importantes que o sejam, podem não ser suficientes. O Financial Times dedica-lhe também um dos seus prestigiados Big Reads.

Mas o que parece evidente é que Macron esgotou o seu poder de barragem da extrema-direita com segundas voltas comprometidas e civicamente empenhadas. Não tendo construído as pontes necessárias com a França mais profunda e mais penalizada pela desigualdade, não será um simples passe de mágica política que resolverá o problema. E assim estamos no dealbar de 2024.

Nota final

Nas festividades natalícias consegui finalmente degustar o Nossa Calcário 2021 da enóloga Filipa Pato, que tinha sido objeto de post a propósito da referência que a jornalista Jancis Robinson lhe fez no Financial Times. Valeu a pena só por aquele final que nos deixa na boca, reclamando por outro trago. Recomendo vivamente.

 

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