quinta-feira, 17 de novembro de 2016

CRISTINA




(Nunca imaginei que, de juízo intacto e cérebro aparentemente ainda a funcionar bem, algum dia escreveria alguma coisa sobre uma personalidade como Cristina Ferreira. Sim, é verdade, mas há sempre um dia…)

Impõe-se para já uma espécie de declaração de conflito de interesses, não de rendimentos, cumplicidades ou de qualquer outra coisa que os vossos espíritos maléficos estejam a congeminar. Cristina Ferreira é daquelas mulheres que me irritam, não porque seja feia ou desinteressante, mas sobretudo porque quando fala aquele tom algo esganiçado e demasiado estridente deve-me tocar algum neurónio mais sensível à dissonância que me leva a procurar sons mais amigáveis.

Então porquê falar da criatura num blogue que tem por mote principal o diálogo ou o conflito entre o público e o privado?

O pretexto é claro. Não foi o produto de algum sonho ou fantasia de sexagenário, mas antes a sua entrevista à Visão de hoje, que tive oportunidade de ler embalado por um Alfa Pendular para Lisboa e volta, cada vez menos pendular, sistematicamente atrasado e perturbando cada vez mais a escrita no portátil ou no IPAD. Nem sequer a referência se justifica pelas poses da protagonista empoleirada num trator ou noutra qualquer posição de regresso às origens. A entrevista é antes um documento sociológico de grande valia e expressão. Não vou arriscar dizendo que me pareceu um testemunho sincero e não preparado para o marketing dos seus vastos negócios. A personalidade já nos habituou que não leva estas coisas a brincar e por isso não enjeito a possibilidade da entrevista ter sido preparada ao milímetro. Mas sincera ou trabalhada, pouco me importa já que a minha relação com a dita não é afetiva, a entrevista é um monumento sociológico, já que raras vezes li um testemunho de uma figura pública com tanto à vontade no esgravatar das suas origens. Por isso admito que, como registo neste blogue, o facto de poder ter sido trabalhada ainda tem mais significado. A sua grande disponibilidade para mexer nas suas condições humildes e difíceis acaba por se transformar num poderoso veículo de identificação com um vasto público, o tal que detesta, senão odeia, as elites e procura avidamente personagens identitárias que criem, mesmo que no plano do intangível, uma ideia de partilha com os seus problemas.

O pretexto da entrevista na Visão é a próxima publicação do seu livro de vivências e origens, toda a gente que se preze publica hoje um livro. A entrevista é, por si só, eloquente, o que tem a vantagem de não prosseguir o objeto sociológico com a leitura do livro.

De todo o texto, retiro uma frase que aliás o jornalista destaca e há que lhe dar razão: “Posso vir a ser empregada de café, mas passados três anos sou dona dele”.

Em tempos difíceis em que a representação identitária das pessoas eleitoras comuns tem constituído um desafio inexpugnável para os agentes políticos, tenho andado particularmente atento aos mecanismos de transferência dessa representação para outros alvos. Isso explica o meu interesse na entrevista de Cristina. Os agentes políticos plastificados ou de formação nas jotas interpretarão estas transferências de modo leviano. Tentarão replicar as Cristinas bem-sucedidas deste país ou, ainda mais oportunisticamente, tentarão invadir o espaço comunicacional por elas construído, ensaiando um minuto de presença nesse raio de influência, mesmo que seja do tipo “Emplastro” embora melhor vestidinhos e com olhar menos alucinado. Como era natural não compreenderam nada.

Leiam a entrevista e vejam como uma mulher de capacidade empreendedora tremenda pode ser uma mulher só, isolada do mundo e protegida pelo seu círculo mais íntimo apesar da sua exposição mediática diária. E para os mais sensíveis ao incómodo da dissonância, podem imaginar uma Cristina de voz menos estridente.

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