(Nunca imaginei
que, de juízo intacto e cérebro aparentemente ainda a funcionar bem, algum dia
escreveria alguma coisa sobre uma personalidade como Cristina Ferreira. Sim, é verdade, mas há sempre um dia…)
Impõe-se
para já uma espécie de declaração de conflito de interesses, não de
rendimentos, cumplicidades ou de qualquer outra coisa que os vossos espíritos
maléficos estejam a congeminar. Cristina Ferreira é daquelas mulheres que me
irritam, não porque seja feia ou desinteressante, mas sobretudo porque quando
fala aquele tom algo esganiçado e demasiado estridente deve-me tocar algum
neurónio mais sensível à dissonância que me leva a procurar sons mais
amigáveis.
Então porquê
falar da criatura num blogue que tem por mote principal o diálogo ou o conflito
entre o público e o privado?
O pretexto é
claro. Não foi o produto de algum sonho ou fantasia de sexagenário, mas antes a
sua entrevista à Visão de hoje, que tive oportunidade de ler embalado por um
Alfa Pendular para Lisboa e volta, cada vez menos pendular, sistematicamente
atrasado e perturbando cada vez mais a escrita no portátil ou no IPAD. Nem
sequer a referência se justifica pelas poses da protagonista empoleirada num
trator ou noutra qualquer posição de regresso às origens. A entrevista é antes
um documento sociológico de grande valia e expressão. Não vou arriscar dizendo
que me pareceu um testemunho sincero e não preparado para o marketing dos seus
vastos negócios. A personalidade já nos habituou que não leva estas coisas a
brincar e por isso não enjeito a possibilidade da entrevista ter sido preparada
ao milímetro. Mas sincera ou trabalhada, pouco me importa já que a minha
relação com a dita não é afetiva, a entrevista é um monumento sociológico, já
que raras vezes li um testemunho de uma figura pública com tanto à vontade no
esgravatar das suas origens. Por isso admito que, como registo neste blogue, o
facto de poder ter sido trabalhada ainda tem mais significado. A sua grande
disponibilidade para mexer nas suas condições humildes e difíceis acaba por se
transformar num poderoso veículo de identificação com um vasto público, o tal
que detesta, senão odeia, as elites e procura avidamente personagens
identitárias que criem, mesmo que no plano do intangível, uma ideia de partilha
com os seus problemas.
O pretexto
da entrevista na Visão é a próxima publicação do seu livro de vivências e
origens, toda a gente que se preze publica hoje um livro. A entrevista é, por
si só, eloquente, o que tem a vantagem de não prosseguir o objeto sociológico
com a leitura do livro.
De todo o
texto, retiro uma frase que aliás o jornalista destaca e há que lhe dar razão:
“Posso vir a ser empregada de café, mas
passados três anos sou dona dele”.
Em tempos
difíceis em que a representação identitária das pessoas eleitoras comuns tem
constituído um desafio inexpugnável para os agentes políticos, tenho andado
particularmente atento aos mecanismos de transferência dessa representação para
outros alvos. Isso explica o meu interesse na entrevista de Cristina. Os
agentes políticos plastificados ou de formação nas jotas interpretarão estas
transferências de modo leviano. Tentarão replicar as Cristinas bem-sucedidas
deste país ou, ainda mais oportunisticamente, tentarão invadir o espaço
comunicacional por elas construído, ensaiando um minuto de presença nesse raio
de influência, mesmo que seja do tipo “Emplastro” embora melhor vestidinhos e
com olhar menos alucinado. Como era natural não compreenderam nada.
Leiam a
entrevista e vejam como uma mulher de capacidade empreendedora tremenda pode
ser uma mulher só, isolada do mundo e protegida pelo seu círculo mais íntimo
apesar da sua exposição mediática diária. E para os mais sensíveis ao incómodo
da dissonância, podem imaginar uma Cristina de voz menos estridente.
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