sábado, 5 de novembro de 2016

ISTO AINDA VAI ACABAR MAL




(As controversas peripécias em torno da Caixa Geral de Depósitos começam a cheirar mal, mas para além do risco de tudo acabar mal, há uma matéria que vale a pena inscrever para debate, o que é afinal o gestor de um banco público?)

A evolução do caso CGD inscreve-se naquilo que os ingleses chamam de “disgusting”. O governo (utilizo esta expressão pois é um mistério se a negociação tem a marca Centeno ou se tem a cobertura inicial do primeiro-Ministro) optou por ir ao mercado buscar uma excelência de gestão reconhecida pelo mercado para suportar a negociação com as autoridades de Bruxelas e de Franckfurt. Até aí nada a opor. Mas daí a comprometer-se com exigências que, admito a controvérsia de interpretação legislativa, roçam o incumprimento da lei não lembraria ao diabo. E, pelos vistos, a excelência do gestor reconhecida pelo mercado vinha acompanhada de outros atributos pouco recomendáveis, como a arrogância e a presunção de estar acima de todo e qualquer escrutínio. A partir do momento em que a controvérsia estalou, abriu-se uma caixa de Pandora de chorrilhos inconcebíveis, do tipo mais diversificado. A direita, com Passos à cabeça, cavalga um pretenso moralismo remuneratório e de escrutínio e, gostaria de saber as razões, atira-se a António Domingues como se de um inimigo figadal se tratasse. À esquerda do PS, continua a imaginar-se que um banco público é uma espécie de instituição mágica, imune às condições de concorrência e de regulação fortíssimas que pesam hoje sobre a atividade bancária, compreendendo eu que os salários astronómicos do gestor teriam que suscitar sempre a reação natural de PCP e Bloco. No PS, a confusão parece instalada, tendo que digerir a negociação de cócoras que o governo terá feito com António Domingues e, simultaneamente, apelar para a necessidade de cumprir preceitos constitucionais que o seu próprio governo parece ter desvalorizado. Domingues, e certamente a sua equipa de confiança, saíram melhor do que a encomenda e ninguém entende a sua relutância de escapar ao escrutínio da entrega das famigeradas declarações de rendimento e património, relutância que só suscita dúvidas, mesmo que possam ser infundadas. No meio disto tudo, Marcelo, o Presidente, parece condenado a ter de protagonizar o bom senso e alertou para a necessidade de respeitar os preceitos constitucionais. E, finalmente, quem diria, o Tribunal Constitucional emerge como o salvador potencial da argolada em que o governo se colocou e que pode correr mal. Não me admiraria que a arrogância de Domingues e companhia acabasse por bater a porta e aí sabe-se lá o que espera a CGD. Pior não seria possível e o que é mais inacreditável é que tudo isto se passa depois do Governo ter conseguido uma lança em África ao negociar com êxito a capitalização da instituição.

De todo este multidistribuído desconchavo, fica apenas uma questão que vale a pena ser discutida com profundidade. Dando de barato que a gestão de um banco público estruturante do sistema financeiro e que se insere num mercado concorrencial e que suporta como qualquer outro a regulação nacional e europeia deve ser encontrada entre os melhores que o mercado oferece, a questão que se coloca é a seguinte: deve esse gestor ser considerado um gestor público ou um gestor privado? A resposta que emerge do desconchavo atrás referido é muito diversificada. Alguma esquerda responde que é um gestor público e que por isso há limites à equiparação com as condições de mercado dos gestores bancários privados, como se o funcionamento de um banco público tivesse de obedecer a objetivos políticos bem definidos. Não é essa a minha interpretação. Que se trata de um gestor público não me oferece dúvidas, pois são recursos públicos que o acionista Estado utiliza para assumir essa função. A capitalização em curso mostra-o à evidência. Mas que o gestor público da CGA não é exatamente equivalente à de um gestor público de uma empresa que oferece bens públicos também não tenho dúvidas. O crédito não é propriamente um bem público. Essa diferença justifica a diferença remuneratória, com as reservas do bom senso, mas não é de molde a dispensar as exigências de escrutínio público. A comunicação política desta razoabilidade ao cidadão comum teria dispensado todo o desconchavo criado. Talvez Domingues tivesse recusado. É possível. Mas não está demonstrado que o Gestor fosse o único e gostaria que alguém me demonstrasse que a personalidade Domingues tenha influenciado decisivamente a negociação com Bruxelas.


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