quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O ABISMO




(Nos dias que vão correr até ao dia de eleições, vai valer tudo em termos de manipulação, mas uma sensação de proximidade do abismo domina estranhamente as minhas preocupações)

As primárias democratas deram o sinal que muitos ignoraram. Hillary revelou-se mais frágil do que antecipáramos, tendo estado bastante perto de sucumbir ao candidato do protesto e da não identificação com a elite, financeira entre outras, de Washington e outros sacrários. E mais sinais foram dados, quando apesar da declaração de Bernie Sanders de apoio a Hillary, tanto quanto se percebeu sincera e justificada pela ameaça de Trump, uma massa relevante de apoiantes de Sanders se recusou a endossar o seu voto a Hillary.

Os sinais vindos das primárias republicanas não foram menos aterradores. A qualidade média dos candidatos era aflitiva e foram todos caindo à medida que o elefante ia ando cabo da loja de louça. E a primeira ideia que todos rejeitariam por inverosímil concretizou-se, Donald Trump fez-se eleger como candidato republicano. Nada mais do que uma trajetória esperada dada a degradação progressiva do Partido Republicano.

Aparentemente a experiência, a fibra e a consistência de Hillary bastariam para conter o primarismo de Trump. Mas a América é uma realidade complexa e profunda e a degradação do modelo económico colocou uma vasta massa de pessoas na margem, excluída pelo sistema, combinada com muito baixas qualificações. Toda essa vasta gama de marginalizados rejeita a elite que Hillary personifica, os laços já foram quebrados há muito, estando por isso sensíveis e recetivos a discursos abjetos, primários, revanchistas, o caldo ideal para compreender e rever-se no primarismo de Trump. E as classes superiores do célebre 1% da população, focadas na apropriação de uma fatia esmagadora do rendimento americano, sentem-se protegidos com o trumpismo, não hesitando em manipular os instrumentos de comunicação e de informação para agradar aos marginalizados do sistema.

E no seio disto tudo vem ao de cima uma preocupante questão de género. Apesar da sua fibra e consistência, Hillary não tem conseguido vencer o muro da discriminação do género, assim como não se libertou o suficiente da elite financeira e pôs-se a jeito em assuntos diversos a começar pelos e-mails. O FBI, fazendo jus aos tempos de Edgar Hoover, resolveu entrar na campanha e parece ter baralhado ainda mais a contenda.

Uma sensação de abismo está instalada. A carta dos Nobel de Economia e de outros economistas representativos não chegará ao coração de onde se decidem as coisas. É muito tardia e pode ser entendida como um “não me comprometa” se acontecer o pior. O último comício de Obama é uma prova de vitalidade e de comovente energia. Quero acreditar que as forças democráticas mais genuínas vão resistir ao primarismo de Trump mas, agora que o abismo pode estar perto, conviria ter melhor em conta a realidade social que torna possível o circo. É difícil extrapolar a situação americana, mas a Europa social-democrata podia dedicar algum tempo a compreender as razões da emergência bem-sucedida de tanto primarismo.

Sem comentários:

Enviar um comentário