(Nos dias que vão
correr até ao dia de eleições, vai valer tudo em termos de manipulação, mas uma sensação de proximidade do abismo domina
estranhamente as minhas preocupações)
As primárias
democratas deram o sinal que muitos ignoraram. Hillary revelou-se mais frágil
do que antecipáramos, tendo estado bastante perto de sucumbir ao candidato do
protesto e da não identificação com a elite, financeira entre outras, de Washington
e outros sacrários. E mais sinais foram dados, quando apesar da declaração de
Bernie Sanders de apoio a Hillary, tanto quanto se percebeu sincera e
justificada pela ameaça de Trump, uma massa relevante de apoiantes de Sanders se
recusou a endossar o seu voto a Hillary.
Os sinais
vindos das primárias republicanas não foram menos aterradores. A qualidade média
dos candidatos era aflitiva e foram todos caindo à medida que o elefante ia
ando cabo da loja de louça. E a primeira ideia que todos rejeitariam por inverosímil
concretizou-se, Donald Trump fez-se eleger como candidato republicano. Nada
mais do que uma trajetória esperada dada a degradação progressiva do Partido
Republicano.
Aparentemente
a experiência, a fibra e a consistência de Hillary bastariam para conter o
primarismo de Trump. Mas a América é uma realidade complexa e profunda e a
degradação do modelo económico colocou uma vasta massa de pessoas na margem, excluída
pelo sistema, combinada com muito baixas qualificações. Toda essa vasta gama de
marginalizados rejeita a elite que Hillary personifica, os laços já foram
quebrados há muito, estando por isso sensíveis e recetivos a discursos abjetos,
primários, revanchistas, o caldo ideal para compreender e rever-se no primarismo
de Trump. E as classes superiores do célebre 1% da população, focadas na
apropriação de uma fatia esmagadora do rendimento americano, sentem-se protegidos
com o trumpismo, não hesitando em manipular os instrumentos de comunicação e de
informação para agradar aos marginalizados do sistema.
E no seio
disto tudo vem ao de cima uma preocupante questão de género. Apesar da sua
fibra e consistência, Hillary não tem conseguido vencer o muro da discriminação
do género, assim como não se libertou o suficiente da elite financeira e pôs-se
a jeito em assuntos diversos a começar pelos e-mails. O FBI, fazendo jus aos
tempos de Edgar Hoover, resolveu entrar na campanha e parece ter baralhado
ainda mais a contenda.
Uma sensação
de abismo está instalada. A carta dos Nobel de Economia e de outros economistas
representativos não chegará ao coração de onde se decidem as coisas. É muito
tardia e pode ser entendida como um “não me comprometa” se acontecer o pior. O último
comício de Obama é uma prova de vitalidade e de comovente energia. Quero acreditar
que as forças democráticas mais genuínas vão resistir ao primarismo de Trump mas,
agora que o abismo pode estar perto, conviria ter melhor em conta a realidade
social que torna possível o circo. É difícil extrapolar a situação americana, mas
a Europa social-democrata podia dedicar algum tempo a compreender as razões da
emergência bem-sucedida de tanto primarismo.
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