sábado, 26 de novembro de 2016

E O FUTURO DO ACORDO À ESQUERDA?




(É uma questão pertinente e não necessariamente pela evolução das sondagens, mas é sobretudo um grande tema de reflexão à esquerda em Portugal, infelizmente sem grande paralelo por essa Europa fora…)

Acho que foi José Pacheco Pereira o primeiro, pelo menos um dos primeiros e com mais consistência, a colocar este problema, reiteradamente em várias edições do Quadratura do Circulo. E não é pela evolução da posição dos partidos do espectro político português mais representativo que a questão suscita reflexão profunda. A sua importância é intrinsecamente independente do PS estar ou não à beira de uma maioria absoluta potencial. Como é óbvio, as glândulas salivares das figuras PS mais lineares e previsíveis devem estar já em fase de aceleração de funcionamento, mas convém não perder de vista que as vulnerabilidades da situação do país se mantêm face a uns desconcertados mercados financeiros.

A questão da renovação e prolongamento do acordo parlamentar à esquerda não é apenas central no desenho do modo como o PS vai apresentar-se aos eleitores portugueses, não sendo indiferente se esse confronto eleitoral vai acontecer na sequência de uma legislatura concluída com o acordo ainda em vigor ou se, pelo contrário, isso acontecerá após uma queda de governo ditada por alguma vicissitude que o acordo não conseguiu acomodar.

A questão é também fulcral para o PCP e para o Bloco de Esquerda, ainda que possa dizer-se que o PCP, pelas manifestações de opinião que vai produzindo, é talvez a formação que no interior do acordo tem lançado mais avisos. Que questões a renovação e o prolongamento do acordo colocam a estas formações? Para responder a esta questão, não pode ignorar-se que o fator determinante que impulsionou o PCP e o Bloco para a possibilidade de um acordo foi o sentimento expresso por quem neles votou de que tudo era desejável menos a continuidade de governação do PAF. Este foi o fator determinante. Os eleitores do PCP e do Bloco não teriam compreendido a inação daquelas forças para barrar o caminho a que o partido mais votado, o PSD, pudesse reatar a governação PAF. Catarina Martins sinalizou a questão ainda em campanha eleitoral, António Costa intuiu essa trajetória e o PCP deu-lhe o cimento da integridade de cumprimento de um compromisso dessa natureza. Ora, resta saber se da parte do PCP e do Bloco esse argumento ainda tem peso, ou seja se o peso dos efeitos da governação PAF na perceção dos seus eleitores é ainda influente ou não. Até aqui não houve propriamente questões de modelo de futuro, mas antes a reconstituição de alicerces mínimos que o PAF tinha destruído, sob a inspiração e capa do ajustamento. Outra questão de diferente natureza é a construção do modelo de casa em cima desses alicerces que outros haviam destruído e que foram minimamente repostos. E aqui, como é conhecido, só o PS tem capacidade de construir esse modelo de casa devolvendo ao investimento privado e à capacidade empresarial a construção dos frutos do crescimento económico.

O que não significa que essa devolução ao investimento privado do seu papel primordial na construção dos frutos do crescimento económico não possa ser compatível com a partilha de valores e condições sociais a assegurar na linha do acordo agora traçado com as forças à esquerda. Em eleições, o PS, o PCP e o Bloco apresentar-se-ão com os seus projetos próprios, mas com um naipe de situações possíveis de governação que não serão mais as mesmas. As três forças podem apresentar-se com a demonstração feita de que o acordo à esquerda é possível, não se tratando de uma mera técnica de cenarização. Ele foi possível com os seus prós e os seus contras, o que é uma coisa totalmente diferente de eleições anteriores. Se esta perspetiva estiver sólida e extrapolando simplesmente o comportamento atual do PSD e do CDS (já estive mais convencido de que o PSD possa mudar), PSD e CDS sabem que só poderão ser governo com maioria absoluta e isso coloca as questões num outro patamar.

Ressalvadas as condições de salvaguarda de paz social e de alguma equidade que deve continuar a colocar aos representantes empresariais como regra incontornável a respeitar numa prática mais colaborativa, o PS não pode envergonhar-se de ser à esquerda a única força política que tem condições para integrar as empresas e os seus representantes numa governação mais de centro-esquerda do que o PAF o pode fazer. E não me parece que seja difícil esgrimir essa condição junto dos seus parceiros à esquerda. Depois desta experiência, o PS (se não descambar com tiques de maioria absoluta à Sócrates) tem condições para, mesmo na presença de uma eventual maioria absoluta (cuja possibilidade não é facilmente extrapolável a partir de sondagens realizadas em tempo de não crispação), continuar a explorar a via de que é possível devolver às empresas um maior protagonismo com respeito por questões que fazem parte dos ideários do PCP e do Bloco.

Mas após o acordo em curso, tudo será diferente e não podemos extrapolar do passado o que será uma futura negociação à esquerda com ou sem maioria absoluta do PS. Tratar-se-á de uma nova prática de negociação, porque as três forças sabem que o eleitorado mudou, afinal o acordo era possível, com euro a pressionar, com os ditames europeus ativos e com as especificidades das três forças sempre presentes.

E se o PSD mudar, recuperando a sua veia original social-democrata? Tenho muita pena, mas o PSD de que Pacheco Pereira tanto fala dificilmente emergirá. Os percursos das formações políticas são também eles “percurso-dependentes”. Isto quer dizer que o tempo prolongado de Passos Coelho e do tipo de personalidades que viu na Troika e no ajustamento a grande inspiração para a erradicação do “velho” Portugal deixa marcas. O envelhecimento de alguns, a viragem para outras ocupações de outros e o estilo de renovação impulsionado por Passos Coelho afastam, em meu entender, a viabilidade de uma trajetória mais social-democrata. Rui Rio pode baralhar o processo? Em teoria pode. Mas tenho dúvidas de que possa transformar-se em alternativa concreta galvanizadora desse reencontro do PSD com as suas origens. O afundamento de Passos (do qual Maria Luís é cada vez mais um alter ego) nas sondagens vai provocar uma espécie de banho-maria no partido, não me parecendo que daí possa emergir necessariamente uma onda de regresso às origens da social-democracia. O que é empobrecedor das alternativas de governabilidade de que o país pode precisar.

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