terça-feira, 29 de janeiro de 2019

OS DÉFICES PÚBLICOS DE NOVO NA BERLINDA

(in Olivier Blanchard, Public Debt and Low Interest rates)


(Não, não se trata de um post para glorificar Centeno e as suas “proezas” orçamentais ou para o sacrificar à luz das cativações. É antes a oportunidade de rediscutir os argumentos quanto aos benefícios ou custos do seu nível elevado ou aumentos do mesmo no novo contexto de baixas taxas de juro de equilíbrio. E quando há economistas como Lawrence Summers e Olivier Blanchard a pronunciarem-se não podemos ficar indiferentes.)

Depois do grande flop econométrico que foi tentar definir um peso ótimo da dívida pública no PIB a partir do qual o aumento do peso da dívida tenderia a penalizar o crescimento económico (matéria que ficará conhecida pelo bug do Excel de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhardt descoberto por um estudante de doutoramento), os economistas têm-se limitado a tatear o problema.

Há, entretanto, algumas aquisições que todo o economista intelectualmente honesto e aberto às evidências não pode ignorar.

Em primeiro lugar, sabe-se que curar recessões, sobretudo generalizadas e com a economia mundial em baixa de procura, com reduções abruptas de défice público, é um exercício mórbido, mesmo que a dívida exceda os tais pretensos limiares de 90% do PIB. Tanto mais mórbido e estúpido quanto mais as famílias e as empresas se encontrarem em processos de desalavancagem, reduzindo elas próprias o seu endividamento, como aconteceu no pós-Grande Recessão de 2007-2008.

Em segundo lugar, é também claro que contrair défices e aumentar o peso da dívida com moeda própria e banco central autónomo não é a mesma coisa que fazê-lo num contexto sem autonomia de emissão monetária, como acontece, por exemplo, na zona Euro, em que o Banco Central Europeu exerce essa função.

Em terceiro lugar e talvez mais importante do que as aquisições anteriores, o contexto estrutural de baixas taxas juro de equilíbrio que tem vindo a prevalecer na economia mundial e de fracas expectativas para o seu aumento a longo prazo tende a revolucionar a maneira como devemos equacionar os défices públicos e as necessidades de financiamento através do endividamento internacional. Tudo isto sem esquecer que não há “almoços grátis”, que os mercados financeiros podem desenvolver processos cumulativos incontroláveis e que, por isso, a experiência de deixar os défices públicos crescerem continuamente até chegar a números insondáveis não se recomenda a ninguém.

O que parece indiscutível é que o discurso dos manuais mainstream de economia já era. Segundo tais teses, o aumento dos défices públicos tende a aumentar as taxas de juro, destrói e inibe o investimento privado e torna a economia globalmente mais pobre. Em sentido inverso, a descida dos défices reduz a taxa de juro e estimula o investimento produtivo. Esta cantilena pode ser cantada mas a letra não diz com a careta das evidências. Se assim fosse o projetado défice público de 105% do PIB para a economia americana em 2028 teria tido efeitos devastadores na economia americana. E até a economia italiana, sem moeda e política monetária próprias e que mostra sinais de poder entrar em situação de incumprimento perante os mercados, apresenta uma taxa de juro real de longo prazo inferior a 2%. Por conseguinte, o que mudou foi o contexto das taxas de juro reais que veio revolucionar e fazer reset a todos os modelos que suportavam a cantilena atrás referida. É pois altura de deixar tatear o problema e construir novos referenciais e novos posicionamentos enquanto uma nova recessão não aparecer por aí a tornar os mercados mais nervosos.

Olivier Blanchard e Lawrence Summers (este na companhia de Jason Furman), respetivamente na lição inaugural da American Economic Association de janeiro de 2019 e na Foreign Affairs, procuram situar o novo estado da arte.

O artigo de Blanchard (link aqui para o artigo e aqui para a apresentação na AEA) é mais formalizado, aliás como o símbolo de lição inaugural da AEA exigiria. Para lá da sofisticada formalização do paper e de outras dimensões que me dispenso aqui de tratar , há dois aspetos muito relevantes para o novo paradigma de avaliação das vantagens e inconvenientes da dívida pública. O contexto de análise é o que já referimos: taxas de juro seguras inferiores à taxa de crescimento económico e perspetivas de que essa relação se mantenha, mais como norma do que como exceção. A análise de Blanchard aponta para situações de dívida pública sem custo fiscal, ou seja sem necessidade de aumento posterior dos impostos. E o que é mais perturbador é que nesse contexto pode cair por terra o argumento tão badalado pela nossa direita de que o aumento da dívida impõe um fardo intergeracional para as gerações futuras. Ou seja, o que pode ser considerado ainda mais estranho, o efeito intergeracional pode ser, em certas condições, positivo. As referidas condições são taxas de juro no futuro suficientemente baixas e a produtividade marginal do capital não demasiado alta.

Há que convir que a lição inaugural de Blanchard marca bem a evolução do paradigma de pensamento sobre os custos da dívida em contexto de taxas de juro seguras baixas.

Por sua vez, o artigo de Summers e de Furman (link aqui ou aqui) , não formalizado, tem sobretudo a grande vantagem de mostrar o descrédito de dois mundos. Primeiro, o tremendismo dos efeitos do aumento da dívida sofre um forte tiro no porta-aviões dos seus argumentos. Segundo, Summers e Furman encarregam-se também de desmistificar a ilusão dos que poderiam alimentar uma ideia de fartar vilanagem, como se o aumento da dívida pudesse não ter fim. E, no descrédito dos extremos, surge a ideia óbvia de que as condições apontam para uma grande oportunidade de valorização do investimento público socialmente justificado e produtivo. Summers e Furman denunciam o aumento de défices por via da redução da receita fiscal que, sobretudo na economia americana, mas também noutros países (veja-se a disparatada política fiscal de Macron antes de ser encostado às cordas pela violência das ruas), não são mais do que um expediente para transferir rendimento para os mais ricos, descendo impostos no topo.

Ambos os contributos mostram que a teoria económica está a mexer e sobretudo a não ficar indiferente ao novo contexto das taxas de juro. São economistas que não andam longe do mainstream, mas que se recusam a considerá-lo intocável e imune ao contraditório.

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