(Gillian Tett, com a sua habitual pertinência, analisa o fogo cruzado em
que o jornalismo de hoje foi apanhado, entre as frentes da revolução tecnológica,
particularmente da internet, e do populismo (fake news). E o que
merece destaque são alguns sinais promissores de adaptação positiva, vejamos
quais.)
A antecipação dos efeitos societais de algumas transformações tecnológicas
está cheia de histórias que são tudo menos preto e branco, ou seja, acabam por
revelar-se mais “fuzzy” (nebulosas e indefinidas) do que era previsto, com mais
ou menos tremendismo na avaliação inicial. Vejam, por exemplo, o diferente
panorama de desaparecimento de produtos como os já saudosos “walkman” (cuja descoberta pela SONY deu
origem a sugestiva literatura sobre a criatividade tecnológica) e os discos em
vynil, para não dizer o próprio CD em formato normal. Sabe-se lá porquê
enquanto os “walkman” aparentemente não
deram origem a nenhuma seita revivalista, o vynil parece ter encontrado alguma
resiliência. Não estou a falar de números, pois se os tivéssemos à mão talvez concluíssemos
que uma coisa são traços impressivos (e muitas vezes afetivos), outra bem
diferente é a realidade nua e crua dos volumes de negócios. Mas o que podemos
dizer é que nestes casos em que não há aparentemente nenhum fator de regulação
política ou administrativa a condicionar a escolha da tecnologia, o
comportamento dos consumidores é por vezes rebelde e foge à tendência das
antecipações. Já no caso, por exemplo, da corrida-confronto entre os motores diesel e motores mais amigáveis em termos
de descarbonização da economia, a duração e o resultado da corrida serão fortemente
tributários de decisões políticas que poderão precipitar ou não o fim dos
diesel.
Vem tudo a propósito das antecipações que têm surgido sobre o futuro do
jornalismo, que é um caso particular de atividade que está hoje sujeita aos efeitos
da revolução tecnológica, com o espectro dos jornais em papel poderem
desaparecer (tenho comprado a edição em papel do Diário de Notícias agora ao sábado
como uma espécie de ato cívico para evitar um futuro saudosismo), mas também da
dimensão mais inesperada do populismo que é proporcionada pelas notícias falsas
propagadas nas redes sociais para enganar papalvo. É sobre esta questão que a
sempre perspicaz Gillian Tett escreve no Financial Times (link aqui) e, como
costumo dizer, quando Gillian escreve algo de robusto aparece.
Tomando a realidade americana como evidência, a jornalista do FT reconhece
que, em matéria de revolução tecnológica, apesar da estratégia de foco nas assinaturas
on line, num período de quase trinta
anos a circulação de jornais terá descido para metade, estando hoje em torno
dos 30 milhões de exemplares. Há registos de que, nos últimos 10 anos, essa dinâmica
de perda tenha destruído cerca de 30.000 postos de trabalho.
Mas a matéria mais interessante do artigo é a que respeita aos efeitos da
onda populista das notícias falsas. Gillian Tett utiliza para o analisar um
indicador de confiança nos media tradicionais. Apoiando-se em estudos de opinião
realizados por um grupo de relações públicas, EDELMAN, Tett mostra que, nos
anos mais recentes, após uma relativa estabilidade no imediatamente após crise
de 2008, as redes sociais e os media corporativos
aumentaram os seus níveis de confiança por parte dos leitores, penalizando o
jornalismo tradicional. Haverá aqui, porventura, alguma influência maligna do
estilo Trump, claramente demonizador dos media
tradicionais. Porém, os últimos dados disponíveis daquela fonte evidenciam
alguma mudança com o nível de confiança nos jornais tradicionais a alimentar para
os 65% dos americanos e a desconfiança (melhor dizendo preocupação com a falsidade)
nas redes sociais aumentou para 73%. Embora continue a haver uma forte
segmentação entre Democratas e Republicanos, a verdade é que a evolução das
assinaturas on line de gigantes como
o New York Times, o Washington Post, o Wall Street Journal e o Financial
Times foi significativa, parecendo validar o mencionado estudo de opinião.
O problema é que o fogo é cruzado e provém de duas frentes. Não deixa de
ser curioso que a adaptação à ameaça tecnológica sobre o papel (combinada com o
apelo cívico) parece funcionar como prova de resistência contra os efeitos do
populismo. De mal o menos, mas como Gillian Tett o afirma, o fogo vai permanecer
ativo e cruzado durante muito mais tempo.
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