sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

LISBOA, COITADINHA

(Esforço tecnológico, despesas em I&D /PIB; nas NUTS III mais dinâmicas, IPCTN, 2016)


(Fez bem o meu colega de blogue em, apesar das funções que exerce e certamente dos equilíbrios que tem de enfrentar para manter pensamento próprio e aturar centralistas, trazer para este espaço de reflexão o significado da desaceleração do crescimento per capita da região de Lisboa, vulgo Área Metropolitana de Lisboa (link aqui). Associo-me à reflexão, dentro daquele espírito que é timbre do pensamento que por aqui se produz segundo o qual damos valor ao sentimento de recusa de acantonamento e ao direito de pensar o país não a partir da sua capital e dos interesses que a povoam mas antes a partir da diversidade do seu território e dos seus diferentes cosmopolitismos, pois não há apenas o cosmopolitismo lisboeta)

Lisboa coitadinha podia ser o título de um fadinho de carpir mágoas e de partir o coração. Durante muito tempo, incluindo os primeiros anos da democracia pós 1974 em que a visão territorial do país era ainda a dos últimos Planos de Fomento, alimentou-se em Portugal a ideia de que o que era bom para Lisboa era bom para todos. Por magia e efeito de vasos comunicantes não identificáveis, o crescimento macrocéfalo de Lisboa e dos seus símbolos de modernidade tecnológica e de serviços avançados haveria de projetar-se por todo o país. Mas os vasos comunicantes que haveriam de conectar o crescimento da aglomeração capital com essa outra realidade, sim essa vaga noção, para muitos, de um outro país, deviam estar cheios de colesterol e outras obstruções, pois esses spread effects não se viram. Está por fazer a geografia profunda dos efeitos da crise do ajustamento das dívidas soberanas, analisando com rigor como é que esses efeitos foram territorializados. Sim e pesar das Borbas deste pais, que servem apenas para justificar os medos da descentralização, a generalidade dos municípios portugueses ajustou-se bem aos novos limites do endividamento, gerindo bem uma parte bem ínfima do bolo da dívida.

Mas se quisermos ser rigorosos, Lisboa capitalizou o fartote dos não transacionáveis. Certamente que o modelo que nos levou ao aperto de 2011, por muitos cambiantes que haja ainda não totalmente explicados das suas origens, se espraiou praticamente por todo o país. Porém, esse modelo é indissociável do reforço do centralismo lisboeta. A capital assumiu bem esse papel e atraiu os quadros, os investimento e os recursos de investimento estrangeiro que o modelo trouxe consigo. Paralelamente com o desvario dos não transacionáveis, Lisboa protagonizou também as ambições dos “donos disto tudo”, embalada pela ambição de empresas globais para uma pequena economia. As PT e os BES deste universo faziam parte do modelo centralista, gerando em torno dessa ambição uma miríade de outros negócios, designadamente a frente dos serviços intensivos em conhecimento prosseguindo a velha ideia de uma grande cabeça fará engordar mais tarde ou mesmo todo o restante corpo.

Todas essas ambições ruíram como um castelo de areia frágil e incapaz de parar a primeira onda mais alterada. A outra componente do modelo, o forte peso da administração pública que se alojou no regaço protetor da capital, também evolui hoje com rédea curta do ministro das Finanças e por isso incapaz de, por si só, assegurar a cobertura da outra perda. É verdade que a pujança da plataforma turística da capital deve ser valorizada, Acaba por ser uma espécie de transacionável cá dentro. Mas, aqui d’el Rey, mal os primeiros números começam a apontar para o desvanecimento das ambições, os cronistas de serviço, com Mateus à frente e imagino que o sempre preocupado Félix Ribeiro não durma já há algumas noites, proclamam que estamos a dar cabo de Lisboa e assim a afundar o país. Mas onde é que para a honestidade intelectual destes cronistas de serviço, tão apaparicados por algumas regiões, incluindo a Norte, que gostam de se fortalecer com a bênção das suas análises? Então, quando estamos em alta e crescimento, os vasos comunicantes parecem bloqueados pelo colestorol mais empedernido e os efeitos do crescimento de Lisboa sobre o outro território são pura imaginação. Porquê então quando as coisas correm mal pela capital se busca essa causalidade trágico-cómica? Brinquem, esforcem-se e vangloriem-se mas não façam de nós parvos.

Entretanto e por razões profissionais e estimulado por análises pioneiras do meu amigo Mário Rui Silva, tenho trabalhado nos últimos dias com os dados do Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional (IPCTN) publicados em 2018 e referentes ao ano de 2016. Como é conhecido, há duas vias complementares, mas nem sempre com o mesmo potencial de informação, de medida da intensidade de inovação de uma economia: medir, por um lado, a dimensão do esforço tecnológico (inputs ambicionando um resultado de inovação) e, por outro, uma dimensão de output tecnológico, por exemplo o número de patentes registadas. O IPCTN é um bom instrumento para medir o esforço tecnológico e o que é relevante fá-lo recentemente a nível de NUTS III, o que já é um nível territorial muito aceitável. O indicador mais divulgado de esforço tecnológico é o das despesas em investigação e desenvolvimento (I&D). A interpretação deste esforço é bem mais rica quando se compara para cada território o esforço em I&D total e em I&D empresarial, ambas em percentagem do PIB, neste caso do PIB NUTS III.

É muito interessante comparar os números primeiro por NUTS II e depois por NUTS III.

Região
Despesa total/PIB
Setor Empresas/PIB
Setor Institucional/PIB
Portugal
1,29
0,62
0,67
Continente
1,34
0,65
0,68
Norte
1,37
0,69
0,69
Centro
1,27
0,66
0,61
AM Lisboa
1,61
0,77
0,85
Alentejo
0,54
0,27
0,27
Algarve
0,36
0,06
0,30
RA Açores
0,30
0,02
0,28
RA Madeira
0,31
0,07
0,24

Por NUTS II, a região de Lisboa é ainda aquela que apresenta o maior esforço tecnológico, não sendo por caso que o esforço do setor institucional é superior ao empresarial.

NUTS III
Despesa total I&D/PIB
(Setor Empresas/PIB)
(Setor Institucional/PIB)
AM do Porto
1,84
0,98
0,86
Cávado
1,74
0,60
1,14
Ave
0,94
0,56
0,38
Oeste
1,08
0,66
0,61
AM Lisboa
1,61
0,77
0,85
Região de Aveiro
2,23
1,22
1,02
Região de Coimbra
2,14
0,60
1,54

Mas o que é que vemos quando se compara o esforço tecnológico da região de Lisboa com o das NUTS III mais pujantes em termos de desempenho inovação? A região de Lisboa passa a ser a sexta das sete NUTS III que lideram o esforço tecnológico global. E atenção a região de Aveiro e a Área Metropolitana do Porto já superam em2016 o esforço tecnológico empresarial da região de Lisboa.

Surpresa, caros cronistas do Reino? Não há surpresa nenhuma, apenas o efeito de convergência assegurado pelos Fundos Estruturais de política de inovação e sobretudo o efeito de que as regiões mais dinâmicas do país, cansados dos tais spread effects vindos da capital, que nunca chegaram, deram corda aos seus sapatos e fizeram pela vida, assegurando uma outra visão territorial do Portugal tecnológico.

A Lisboa coitadinha é assim uma simples manifestação de um país que está a mudar, lentamente é certo, mas mesmo assim ao ritmo suficiente para que alguns mitos se desfaçam ainda em vida dos tais cronistas de serviço.

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