sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

ROMA, VISTO POR UMA MEXICANA



(A visualização do filme ROMA de Alfonso Cuarón impressionou-me vivamente, sobretudo pelo registo de memórias de juventude numa cidade do México hoje profundamente transformada e pelo foco na “nanny” Cleo. Visto e interpretado por uma mexicana é como se visualizasse de novo o filme.)

A lenta evolução do ritmo do tempo e da própria imagem do ROMA até à insuportável rapidez da violência e do modo como ela irrompe de quando em vez no filme é para mim um prodígio de confronto com o fervilhar por vezes tonto e sem sentido dos nossos tempos. Sei pouco, e como o lamento, da história do cinema, mas não conheço nenhum filme contado do ponto de vista central que uma empregada interna de família suscita às memórias de um realizador como Cuarón o faz, numa espécie de homenagem às que pelas voltas da vida acabam por se afeiçoar mais aos filhos de quem servem do que aos seus.

Tinha percebido no filme que Cuarón tinha resistido a fornecer ao espectador chaves adicionais para a contextualização da narrativa na cidade do México, que para mim se limita à literatura de Bolaño e a algumas histórias de amigos e profissionais sobre a insegurança permanente que se vive naquele monstro urbano. É como se isso perturbasse a evocação das suas próprias memórias, receando conspurcá-las com esclarecimentos para quem a não conhece.

Por isso, foi com inequívoco júbilo que acabei de ler na New York Review of Books (link aqui) a sensível crónica interpretativa do filme de Cuarón por uma jornalista-escritora de mão cheia nascida na Cidade do México e com um largo conhecimento vivencial daquela Cidade e dos seus períodos de transformação, Alma Guillermoprieto. O título da crónica é enigmático, The Twisting Nature of Love, que arrisco traduzir por A natureza torcida ou enrolada do amor, que não é mais do centrar o foco do filme no amor que Cleo, a nanny frágil e pequena nascida no sul do México. A forma como Alma Guillermoprieto percorre as ruas da sua própria memória da vida e da cidade e nos ajuda a interpretar melhor o filme, porque melhor contextualizado, equivale a uma segunda leitura do filme sem o visualizar de novo, embora com ganas de o fazer. E com a leitura do artigo de Guillermoprieto, compreende-se ainda melhor o pudor de Cuarón em ser mais explícito, sob pena de violentar as suas memórias.

Decididamente um grande filme e eis a razão para um segundo post sobre o mesmo.

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