(A visualização do filme ROMA de Alfonso Cuarón
impressionou-me vivamente, sobretudo pelo registo de memórias de juventude numa
cidade do México hoje profundamente transformada e pelo foco na “nanny” Cleo. Visto e interpretado por uma mexicana é como se
visualizasse de novo o filme.)
A lenta evolução do ritmo do tempo e da própria imagem do ROMA até à
insuportável rapidez da violência e do modo como ela irrompe de quando em vez
no filme é para mim um prodígio de confronto com o fervilhar por vezes tonto e
sem sentido dos nossos tempos. Sei pouco, e como o lamento, da história do
cinema, mas não conheço nenhum filme contado do ponto de vista central que uma
empregada interna de família suscita às memórias de um realizador como Cuarón o
faz, numa espécie de homenagem às que pelas voltas da vida acabam por se
afeiçoar mais aos filhos de quem servem do que aos seus.
Tinha percebido no filme que Cuarón tinha resistido a fornecer ao espectador
chaves adicionais para a contextualização da narrativa na cidade do México, que
para mim se limita à literatura de Bolaño e a algumas histórias de amigos e
profissionais sobre a insegurança permanente que se vive naquele monstro
urbano. É como se isso perturbasse a evocação das suas próprias memórias,
receando conspurcá-las com esclarecimentos para quem a não conhece.
Por isso, foi com inequívoco júbilo que acabei de ler na New York Review of
Books (link aqui) a sensível crónica interpretativa do filme de Cuarón por uma
jornalista-escritora de mão cheia nascida na Cidade do México e com um largo
conhecimento vivencial daquela Cidade e dos seus períodos de transformação,
Alma Guillermoprieto. O título da crónica é enigmático, The Twisting Nature of Love, que arrisco traduzir por A natureza
torcida ou enrolada do amor, que não é mais do centrar o foco do filme no amor
que Cleo, a nanny frágil e pequena nascida no sul do México. A forma como Alma
Guillermoprieto percorre as ruas da sua própria memória da vida e da cidade e
nos ajuda a interpretar melhor o filme, porque melhor contextualizado, equivale
a uma segunda leitura do filme sem o visualizar de novo, embora com ganas de o
fazer. E com a leitura do artigo de Guillermoprieto, compreende-se ainda melhor
o pudor de Cuarón em ser mais explícito, sob pena de violentar as suas
memórias.
Decididamente um grande filme e eis a razão para um segundo post sobre o mesmo.
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