(Uma semana intensa, duas viagens a Lisboa em torno das
massas críticas (relevantes) de investigação do ISCTE, logo pleno direito à
liberdade das sextas-feiras, em jeito de procrastinação matinal. Oportunidade para não perder o contacto com a
Cidade que se vai transformando a uma velocidade incrível.)
Tenho-me dado bem com este estatuto de semi-aposentado no ativo e quanto
mais intensa é a semana dos 80% (de segunda a quinta) mais gozo provoca a
liberdade das sextas-feiras, e não apenas porque é o dia do contacto mais
próximo com os netos que estão por cá. Tenho os meus rituais de visitante
acidental da Cidade, tão em estilo de “flâneur”
como o tempo o permite, regra geral determinados por um primeiro objetivo, o
qual cumprido dá origem à usufruição acidental, para sentir o pulso ao Porto em
rápida e profunda transformação.
Hoje, o motivo inicial era a costumeira ilusão de aparar a barba para
rejuvenescer um pouco, que me leva sempre ao Carmo da minha infância e
adolescência, de Carlos Alberto ao largo da Escola Médica em frente ao velhinho
edifício do antigo Abel Salazar, passando pela velha Reitoria, que se cruza
sempre com os 5 anos de Economia no sótão do edifício, à desaparecida Leitura
(e ao deficiente sucedâneo da Bulhosa que já também desapareceu), a alguns
alfarrabistas que resistem, ao velho Progresso capturado pelo Avillez para um
novo Cafeína. Hoje havia um segundo objetivo, passar uns minutos na TUBITEK, a
discoteca de D. João I, que passa por ser hoje em dia um dos raros refúgios
onde podemos procurar uma preciosidade já fora dos catálogos, como o era em
tempos a Roma em Lisboa, a que afluía religiosamente a cada ida à capital.
Apetecia-me procurar preciosidades desaparecidas de LUZ CASAL
(aquela voz inconfundível da Corunha de Un
Año de Amor no Tacones Lejanos de Almodovar) e de Jennifer Warnes (a que
cheguei por via do Miguel Esteves Cardoso) e tentar obter finalmente o disco de
Rosalia, tão apregoado pela crítica no início deste ano. É um regalo poder
regressar a uma discoteca com atendimento personalizado, de alguém que busca
nos registos a fonte possível de satisfação do nosso pedido. Pois encontrei uma
preciosidade da LUZ CASAL já fora dos catálogos (Pequeños, médios e grandes
éxitos), alistei-me no reforço de stock (hoje esgotado) de Rosalia e apanhei
uma novidade em Vynil da grande Jodi Mitchell. Uma boa pesca.
Algumas tabacarias com stocks mais diversificados de revistas de todo o
mundo vão resistindo, oportunidade para pegar na New York Review of Books e rumar ao Guarani para uns tempos de
imersão no Porto cada vez mais cosmopolita. Oportunidade para na NYRB mergulhar
num artigo excelente de Francisco Cantú, antecipando a publicação em fevereiro
de THE LINE BECOMES A RIVER, um pungente testemunho sobre a situação de exceção
que se vive na fronteira entre o México e os Estados Unidos.
Deixo-vos com esta citação que abala toda a procrastinação:
“Nas terras da fronteira
ficámos condicionados, principalmente a viver com uma sempre presente sensação
de incomodidade, de ser observado, de nos movimentarmos por uma paisagem a que
foi atribuída um novo significado de terreno em transição – um lugar
configurado para existir, literal e figurativamente, nas margens. Habitar tal
lugar é habitar um estado de entrelaçamento (in betweeness), um espaço em que o
solo é agressivamente reivindicado, mas em que as pessoas que a ele pertencem e
as que procuram atravessá-lo são rejeitados. É um lugar em que a tardia escola
de Chicana e a teórica Gloria Anzaldúa descreveram como “um espçao instável,
imprevisível, precário, sempre em transição ao qual faltam limites claros, um
lugar que ela refere utilizando a palavra Nahuatl para espaço intermédio, nepantla. “Viver nesta zona limite,
escreve ela, significa estar num estádio de deslocação permanente.”
Profundo e aterrador, porque temos a convicção de que a fronteira entre o
Méxio e os EUA é hoje um território com a democracia suspensa.
Nota final:
Morreu ontem, em paz, no Colégio das Doroteias do Sardão em Oliveira do
Douro em Vila Nova de Gaia, uma mulher com M grande, a Madre Maia, Maria de
Lurdes Maia, matemática, responsável pela criação da Escola Paula Frassinnetti,
uma mulher que antecipou no tempo na Igreja, com um trabalho exemplar nas áreas
da educação e da intervenção social. O meu conhecimento da personalidade é
muito indireto para além de uma vez em que com a minha mulher tentei
resolver-lhe um problema de informática nas suas instalações no Sardão. A minha
mulher privou com a Madre Maia não só no Colégio enquanto aluna (alguém que
projetava as alunas na leitura e trazia para reflexão textos incómodos do Le
Monde e outras fontes), mas também ao longo da sua vida, auxiliando-a no seu
ritual anual de envio aos seus conhecimentos mais próximos de um poema sempre
por ela escrito. Curiosamente, tive também ecos da Madre Maia através de uma
personalidade ímpar da Cidade do Porto, o matemático e explicador Carlos
Espaim, o último anarquista da Cidade, que tinha uma reverência intelectual e
de amizade pela Madre que sempre me espantou.
A Madre Maia foi uma Mulher que antecipou o tempo na Igreja e na sociedade
portuguesa que deve ter marcado para sempre as pessoas com quem privou mais de
perto. Tive o prazer de lhe oferecer o HUMANISME ET DÉMOCRACIE (Fayard) de Edward
W. Said e sei pela minha mulher como ela o apreciou.
A Madre Maia é daquelas Mulheres e personalidades que passaram
despercebidas dos media e do corre-corre comunicacional dos nossos tempos, mas
cuja grandeza alguém descobrirá num tempo futuro.
O mundo é pequeno. Podem ver uma foto da Madre na página 289 do Bilhete de Identidade da Maria Filomena Mónica, que reproduz o grupo liceal cuja professora era então a Madre Maia.
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