sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

PROCRASTINAÇÃO (MATINAL) URBANA



(Uma semana intensa, duas viagens a Lisboa em torno das massas críticas (relevantes) de investigação do ISCTE, logo pleno direito à liberdade das sextas-feiras, em jeito de procrastinação matinal. Oportunidade para não perder o contacto com a Cidade que se vai transformando a uma velocidade incrível.)

Tenho-me dado bem com este estatuto de semi-aposentado no ativo e quanto mais intensa é a semana dos 80% (de segunda a quinta) mais gozo provoca a liberdade das sextas-feiras, e não apenas porque é o dia do contacto mais próximo com os netos que estão por cá. Tenho os meus rituais de visitante acidental da Cidade, tão em estilo de “flâneur” como o tempo o permite, regra geral determinados por um primeiro objetivo, o qual cumprido dá origem à usufruição acidental, para sentir o pulso ao Porto em rápida e profunda transformação.

Hoje, o motivo inicial era a costumeira ilusão de aparar a barba para rejuvenescer um pouco, que me leva sempre ao Carmo da minha infância e adolescência, de Carlos Alberto ao largo da Escola Médica em frente ao velhinho edifício do antigo Abel Salazar, passando pela velha Reitoria, que se cruza sempre com os 5 anos de Economia no sótão do edifício, à desaparecida Leitura (e ao deficiente sucedâneo da Bulhosa que já também desapareceu), a alguns alfarrabistas que resistem, ao velho Progresso capturado pelo Avillez para um novo Cafeína. Hoje havia um segundo objetivo, passar uns minutos na TUBITEK, a discoteca de D. João I, que passa por ser hoje em dia um dos raros refúgios onde podemos procurar uma preciosidade já fora dos catálogos, como o era em tempos a Roma em Lisboa, a que afluía religiosamente a cada ida à capital. Apetecia-me procurar preciosidades desaparecidas de LUZ  CASAL (aquela voz inconfundível da Corunha de Un Año de Amor no Tacones Lejanos de Almodovar) e de Jennifer Warnes (a que cheguei por via do Miguel Esteves Cardoso) e tentar obter finalmente o disco de Rosalia, tão apregoado pela crítica no início deste ano. É um regalo poder regressar a uma discoteca com atendimento personalizado, de alguém que busca nos registos a fonte possível de satisfação do nosso pedido. Pois encontrei uma preciosidade da LUZ CASAL já fora dos catálogos (Pequeños, médios e grandes éxitos), alistei-me no reforço de stock (hoje esgotado) de Rosalia e apanhei uma novidade em Vynil da grande Jodi Mitchell. Uma boa pesca.

Algumas tabacarias com stocks mais diversificados de revistas de todo o mundo vão resistindo, oportunidade para pegar na New York Review of Books e rumar ao Guarani para uns tempos de imersão no Porto cada vez mais cosmopolita. Oportunidade para na NYRB mergulhar num artigo excelente de Francisco Cantú, antecipando a publicação em fevereiro de THE LINE BECOMES A RIVER, um pungente testemunho sobre a situação de exceção que se vive na fronteira entre o México e os Estados Unidos.

Deixo-vos com esta citação que abala toda a procrastinação:

Nas terras da fronteira ficámos condicionados, principalmente a viver com uma sempre presente sensação de incomodidade, de ser observado, de nos movimentarmos por uma paisagem a que foi atribuída um novo significado de terreno em transição – um lugar configurado para existir, literal e figurativamente, nas margens. Habitar tal lugar é habitar um estado de entrelaçamento (in betweeness), um espaço em que o solo é agressivamente reivindicado, mas em que as pessoas que a ele pertencem e as que procuram atravessá-lo são rejeitados. É um lugar em que a tardia escola de Chicana e a teórica Gloria Anzaldúa descreveram como “um espçao instável, imprevisível, precário, sempre em transição ao qual faltam limites claros, um lugar que ela refere utilizando a palavra Nahuatl para espaço intermédio, nepantla. “Viver nesta zona limite, escreve ela, significa estar num estádio de deslocação permanente.”

Profundo e aterrador, porque temos a convicção de que a fronteira entre o Méxio e os EUA é hoje um território com a democracia suspensa.

Nota final:

Morreu ontem, em paz, no Colégio das Doroteias do Sardão em Oliveira do Douro em Vila Nova de Gaia, uma mulher com M grande, a Madre Maia, Maria de Lurdes Maia, matemática, responsável pela criação da Escola Paula Frassinnetti, uma mulher que antecipou no tempo na Igreja, com um trabalho exemplar nas áreas da educação e da intervenção social. O meu conhecimento da personalidade é muito indireto para além de uma vez em que com a minha mulher tentei resolver-lhe um problema de informática nas suas instalações no Sardão. A minha mulher privou com a Madre Maia não só no Colégio enquanto aluna (alguém que projetava as alunas na leitura e trazia para reflexão textos incómodos do Le Monde e outras fontes), mas também ao longo da sua vida, auxiliando-a no seu ritual anual de envio aos seus conhecimentos mais próximos de um poema sempre por ela escrito. Curiosamente, tive também ecos da Madre Maia através de uma personalidade ímpar da Cidade do Porto, o matemático e explicador Carlos Espaim, o último anarquista da Cidade, que tinha uma reverência intelectual e de amizade pela Madre que sempre me espantou.

A Madre Maia foi uma Mulher que antecipou o tempo na Igreja e na sociedade portuguesa que deve ter marcado para sempre as pessoas com quem privou mais de perto. Tive o prazer de lhe oferecer o HUMANISME ET DÉMOCRACIE (Fayard) de Edward W. Said e sei pela minha mulher como ela o apreciou.

A Madre Maia é daquelas Mulheres e personalidades que passaram despercebidas dos media e do corre-corre comunicacional dos nossos tempos, mas cuja grandeza alguém descobrirá num tempo futuro.

O mundo é pequeno. Podem ver uma foto da Madre na página 289 do Bilhete de Identidade da Maria Filomena Mónica, que reproduz o grupo liceal cuja professora era então a Madre Maia.

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