(Cheguei à conclusão por estes dias que a hipocrisia americana e ocidental em geral acerca da China é imensa. Aparentemente, está instalado um enorme desdém sobre a pretensa característica de motor da economia mundial. Mas se ouve tema económico que marcou o mês de agosto foi o debate sobre a explicação do declínio económico chinês, a ponto de se discutir a fundo se a China integra o grupo de países que se encontram presos na chamada armadilha dos níveis intermédios de rendimento. Assim sendo, se a China não interessasse, o tema de debate não teria a disseminação e intensidade que apresentou neste mês de agosto. E, como tenho vindo a salientar, entre a retórica política agressiva para cidadão papalvo se entusiasmar e a prática política concreta da administração americana para com as autoridades chinesas vai uma distância imensa, como o demonstram os sucessivos grupos de trabalho e iniciativas com os quais a administração americana tenta salvaguardar a estabilidade dos mercados globais em intenso reordenamento. Por isso, a China interessa e daí que continue a conceder-lhe o espaço que justifica nas reflexões deste blogue.
O tema é relevante, sobretudo porque a comunidade ou tribo dos economistas está longe de ter chegado a um consenso minimamente estruturado sobre as razões que explicaram quer os vinte anos de crescimento prodigioso que a China trouxe para a economia mundial, quer agora a sua estagnação. Economistas de grande perspicácia como Bradford DeLong não se inibem de proclamar aos quatro ventos essa dificuldade e foi nessa onda de influência que cheguei a uma proposta explicativa bastante compreensiva de autoria de Arpit Gupta, Professor da Universidade de Nova Iorque.
O caráter compreensivo da explicação passa por recuperar o ponto central da controvérsia entre Adam Tooze e Michael Pettis/Mattew Klein. Segundo o primeiro, a China teria entrado em estagnação económica devido ao chamado risco da expropriação económica autoritária. A estagnação seria um problema de Xi Jinping na medida em que o autoritarismo repressivo seria incapaz de dotar os atores privados dos incentivos necessários. De acordo com os segundos, seriam antes desequilíbrios estruturais internos que explicariam a estagnação. O principal desses desequilíbrios consiste no facto do peso do investimento no PIB tornar insignificante o peso das despesas de consumo, que tornou a economia chinesa excessivamente dependente da dinâmica infernal do investimento não acautelando as ambições de aumento de consumo das classes médias chinesas em ascensão. Penso que Gupta tem razão quando questiona a tese de que o aumento do peso das despesas de consumo tenderá a fazer aumentar o nível de produtividade da economia. Não é seguro que esse aumento não possa traduzir-se em desvios para o consumo de serviços. Por isso, Gupta admite que o stock de capital público e privado por trabalhador possam ainda crescer, ainda que os governos locais chineses atravessem hoje uma situação de endividamento muito problemática.
Daí que Gupta lance na discussão um terceiro elemento que radica na tradicional dependência do crescimento económico chinês do investimento imobiliário. Ora, o setor imobiliário chinês atravessa um período de crise aberta, na qual Gupta identifica quatro perversidades: (i) a baixa produtividade total dos fatores do setor da construção associa o investimento imobiliário a um clima de rendimentos decrescentes; (ii) a bolha especulativa terá rebentado e teme-se uma série de defaults de entidades promotoras que se endividaram fortemente; (iii) a euforia imobiliária terá levado a economia chinesa a uma série de investimentos cuja racionalidade económica é cada vez mais discutível; (iv) um típico problema de excesso de alavancagem, devido sobretudo ao endividamento crescente e descontrolado que a euforia imobiliária provocou.
O quarto elemento proposto por Gupta é mais sofisticado e invoca um dos contributos mais importantes do economista que mais trabalhou o planeamento comunista, Janos Kornai. O princípio de Kornai ficou conhecido por “soft budgetary constraints” (constrangimentos orçamentais suaves) e baseia-se na ideia de que como a falência de empresas é considerada uma impossibilidade isso tende a multiplicar as más decisões nas cadeias de decisão e gestão, prolongando situações de grande ineficiência e baixando a produtividade total dos fatores num número muito dilatado de setores e empresas.
Na explicação de Gupta são estas quatro razões que têm de ser combinadas para se compreender a estagnação económica chinesa. A complexidade do problema é visível. Ora é precisamente pela complexidade do problema que se compreende a importância da China para o estado da arte da economia global. Complexidade que obviamente a retórica política é incapaz de integrar. Como sempre.
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