segunda-feira, 7 de agosto de 2023

GOOD NEWS = BAD NEWS OU FINALMENTE GOOD NEWS = GOOD NEWS?

 

(Ilustração de Igor Bastidas para um artigo de Jeanna Smialek e Ben Casselman publicado no New York Times de 4 de agosto, que largamente inspirou esta reflexão)

(O tema da crónica de hoje é obviamente a inflação, sobretudo em torno da conflitualidade de interpretações que tem suscitado, fazendo jus à especificidade que a tribo ou as tribos de macroeconomistas ostentam para mal da sua afirmação junto da decisão política. Como tema central dessa conflitualidade temos naturalmente os meandros atribulados da política monetária e do modo como ela atua para tentar fazer retornar a inflação ao valor mítico dos 2%, mesmo que muito boa e prestigiada gente se interrogue se faz sentido manter esse referencial mítico dos 2% para representar a chamada estabilidade dos preços.)

Se em matéria de pontos de convergência a tribo dos macroeconomistas deixa muito a desejar, já do ponto de vista da antecipação dos efeitos da política monetária restritiva para controlar a pressão inflacionista, a diversidade das famílias interpretativas está melhor organizada e divide-se essencialmente em dois grupos.

De um lado, que poderíamos designar de mais otimistas, temos os que recorrem à metáfora da aterragem de um avião para admitir que o controlo da inflação pode ser concretizado num ambiente de aterragem suave (soft landing) que todo o bom piloto se esforça por conseguir para comodidade dos seus passageiros. Nesta conceção, a economia não necessitaria de passar por recessões profundas para arrefecer a pressão inflacionista.

De outro lado, temos os mais pessimistas que antecipam que para se fazer ouvir e respeitar, designadamente através dos mecanismos do crédito bancário, a política monetária vai acabar por gerar uma recessão nas economias, atingindo negativamente o desemprego e tendendo a complicar ainda mais a vida aos que já sofrem mais pelos próprios efeitos da inflação sobre o rendimento real das famílias.

Com maior incidência na economia americana, mas também com ecos evidentes na União Europeia, em que a política monetária restritiva do BCE ainda não pressionou fortemente o desemprego, as sucessivas subidas de taxas de juro de referência têm coexistido com uma dinâmica macroeconómica das economias americana e de algumas economias europeias (o motor alemã parece dar sinais de querer falhar nos tempos mais imediatos) e, nos tempos mais recentes, com uma nítida desaceleração do processo inflacionista. Esta é das tais situações que dá para o chamado princípio da equivalência, ou seja, a mesma evidência empírica dá para acomodar diferentes interpretações (e como eu entendo os nossos colegas das ciências mais exatas que se atiram ao ar com esta fragilidade da economia, sorrindo amavelmente quando alguém menciona a “ciência económica”.

De facto, a evidência acomoda os mais céticos quanto à política monetária, clamando que os números mostram a não efetividade da política monetária, mostrando que as economias não deixaram de crescer e nem por isso a inflação deixou de perder força. Mas também agrada aos mais ortodoxos que a utilizam para mostrar que a política monetária vai ter de continuar restritiva nos próximos tempos, como se se tratasse do rescaldo de um fogo violento que tem de ser controlado até não ser possível o seu reacendimento.

Mas há um elemento decisivo que não pode ser ignorado e que muito provavelmente explica melhor a desaceleração do crescimento dos preços do que a ação da política monetária.

Uma das fontes mais impactantes da aceleração inicial dos preços foram as disrupções de oferta que se observaram quando as famílias recuperaram magnitudes de consumo que haviam sido abruptamente reduzidas em pleno confinamento. Essa recuperação do consumo das famílias apanhou a oferta global perturbada pelas paragens de produção e pela disrupção das cadeias de valor globais, posteriormente agravadas pelo ensandecimento de Putin. É uma fonte de pressões inflacionistas de manual, a procura recupera mais rapidamente do que a oferta global e obviamente tende a gerar pressões de preços, pelo menos nas categorias de bens e serviços mais atingidos por essa disrupção.

Ora, embora não possamos dizer que as cadeias de valor globais estão recompostas e reordenadas, que não estão, e daí a tentativa desesperada de gente importante nos EUA para contrariar o discurso guerreiro e belicista contra a China, procurando mitigar consequências danosas sobre a globalização e oferta global, a verdade é que essas tensões de oferta apresentam hoje uma menor intensidade. Se assim for, como o parece ser, a resiliência das economias e o crescimento observado, malgré as subidas das taxas de juro, pode refletir precisamente isso, ter sido possível sem encontrar já grandes tensões de oferta.

Assim, por mais estranho que isso possa parecer, a equação good news=bad news tão apregoada nos últimos tempos pelos pressagiadores de que o controlo da inflação implicará algum dia aumento do desemprego e riscos de aterragem instável, pode começar a dar origem a uma nova equação good news = good news. A resiliência das economias deixará de ser considerada uma prova de que a política monetária não está a ser suficientemente punitiva como deveria, mas antes como uma evidência de que procura e oferta globais caminham para um ajustamento dinâmico que não obrigará à penosidade de uma recessão.

Claro que se o motor alemão gripar de facto poderemos estar longe de um soft landing à europeia. Mas convirá não ignorar que a tão apreciada economia alemã enfrentou no tempo mais recente um brutal ajustamento do seu modelo energético tão irresponsavelmente concebido será das economias a enfrentar um processo de ajustamento mais lento ao reordenamento das cadeias de valor globais, dada a dependência face à economia chinesa.

E, por muito que isso perturbe Madame Lagarde, não é a política monetária do BCE que facilitará esse ajustamento da economia alemã. Talvez os alemães devam refletir sobre o momento da sua economia e rever a sua ideia de solidariedade europeia. Tão apressadamente expuseram em público a sua falta de solidariedade para com as economias do sul a braços com a crise das dívidas soberanas, não descansando enquanto não retiraram do teatro das operações os capitais investidos por bancos alemães com duvidosa análise de risco, que talvez agora percebam melhor que a União Europeia vai enfrentar dificuldades pela gestão duvidosa da sua política industrial e energética.

 

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