quarta-feira, 2 de agosto de 2023

QUANDO OS INTERESSES DA IGREJA E DE LISBOA SE ALINHAM …

 

(Estou certo que se residisse em Lisboa e estivesse nesta altura ainda a trabalhar, mesmo que em regime de teletrabalho, minimizando a utilização da Cidade, talvez escrevesse algo noutro tom, farto da concentração de gente e do alarido juvenil. Mas esse não é o meu estado, estou a cerca de 400 quilómetros do epicentro das Jornadas Mundiais da Juventude, dou olhadas furtivas ao evento pela televisão, o Papa com todas as suas contradições é um Ser que merece atenção e respeito e por isso o tom da reflexão não pode deixar de ser distanciado. As JMJ começaram mal com a controvérsia dos palcos e dos valores de orçamento que estavam anunciados, mas estou convencido que a canhestra forma como o assunto foi comunicado não era atribuível ao Vaticano e particularmente à entourage de confiança do Papa Francisco. Tudo alinhava mais com a nossa particular propensão para ser mais Papistas do que o próprio Papa, naquele afã periférico de mostrar serviço e especialmente com aquela doentia vontade de querer mostrar que somos os maiores nos grandes eventos, reafirmando aquele estatuto tão profundamente estudado por Eduardo Lourenço de que já fomos Grandes e que já tivemos o mundo dividido em dois, com uma parte só para nós. Depois da controvérsia se esvaziar, a maior agilidade comunicacional de D. Américo Aguiar, coordenador das JMJ e novo Cardeal, recompôs a coisa, embora à última hora o Plano de Mobilidade tivesse assustado, mas nada que a costumeira capacidade de improvisação não resolvesse. Abertas as Jornadas e à medida que vou passando os olhos por algumas imagens e/ou reportagens forma-se-me claramente a ideia de que as JMJ consagram um alinhamento perfeito de interesses entre a Igreja e Lisboa, numa espécie de parceria para o presente, neste vivendo os desafios do futuro.)

O Cardeal D. Manuel Clemente teve ontem finalmente uma intervenção na linha do que o seu estatuto de intelectual teria antecipado de melhor para a sua cinzenta passagem pelo Patriarcado de Lisboa. É verdade que o seu tom comunicacional não é o mais ágil e convincente, desconheço se haveria tradução simultânea para todos os fiéis presentes na missa inaugural do Parque Eduardo VII, mas o texto estava ao nível do que lhe conhecíamos e que o distinguiu e notabilizou enquanto não rumou a Lisboa.

Mas não há dúvida de que as JMJ vieram no momento certo para uma depauperada e desacreditada Igreja, que manifestou tanta inabilidade, insensibilidade e falta de coragem no modo como tratou a sequência dos trabalhos da Comissão Independente sobre o abuso de menores. Esta onda de juventude que inundou Lisboa é algo de essencial e disruptivo para uma Igreja que necessita, para sobreviver, de criar os mecanismos necessários para que este espírito juvenil de compromisso e de adesão possa transmitir-se às cúpulas e assim facilitar a onda de mudança que o Papa Francisco com as suas limitações procura disseminar no seu interior. Não é líquido que esta disrupção juvenil possa fazer o seu caminho para lá do evento e das imagens gigantescas de concentração de diferentes formas de rejuvenescimento da Fé. Será a mensagem da disrupção juvenil lida em conformidade? Não sabemos e a nossa interrogação adensa-se com a eventual passagem de testemunho de Francisco.

Mas se as JMJ consagram o momento certo de algum alento para uma Igreja desacreditada, elas também vão no rumo pretendido por uma Capital que começa a depender, quase sob a forma de adição, de grandes eventos e da sua internacionalização para afirmar a sua imagem e, de facto, a esmagadora beleza de alguns dos seus espaços.

Ousando aqui ensaiar o estatuto de aprendiz de psiquiatra dos territórios, diria que Lisboa está hoje em crise do ponto de vista do seu relacionamento com o resto do país. Lisboa carece hoje de ativos suficientes para se justificar enquanto mega concentração perante o restante território. Lisboa compreende cada vez pior o país e este aceita cada vez menos a obrigação senhorial de contribuir para o seu crescimento desmesurado, pois a história dos efeitos spread a partir da aglomeração da capital para os restantes territórios revelou-se ser uma grande treta. Estamos todos cansados das diferentes regras de jogo, diferença essa sempre justificada pela necessidade de preservar a concentração. E isso é mau porque vai faltando a essa concentração a engenharia de ordenamento e de qualidade necessárias para preservar a qualidade de vida.

É esse contexto que explica que a Cidade-capital necessite cada vez mais do exterior para se justificar e sobreviver. São os vistos gold, são os nómadas digitais, são as maravilhas da WEB Summit, é a plataforma giratória turística. A contradição instala-se. Os efeitos sobre os preços determinam que sejam progressivamente os estrangeiros endinheirados a manter o relacionamento. Se o restante país perdera já as ilusões de algum dia beneficiar da aglomeração, isso estende-se aos próprios residentes expulsos pelo mercado, designadamente habitacional.

Por isso, as JMJ são absorvidas como se fosse água potável em deserto abrasador. Ou seja, Lisboa precisa dos grandes eventos internacionais para justificar a primazia da concentração, porque perdeu definitivamente o país. E, obviamente, com uma concentração-evento desta magnitude, Lisboa parece rejuvenescer, a beleza dos grandes espaços e panorâmica reinstala-se, nem que para isso durante alguns a vida dos seus residentes se torne num inferno.

Daí o alinhamento de interesses – as JMJ na encruzilhada da Igreja e da Cidade-capital.

 

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