terça-feira, 15 de agosto de 2023

O PROBLEMA CHINÊS: FIM DE RUMO OU SIMPLES MUDANÇA ESTRUTURAL?

 


(A economia chinesa tem andado nas bocas do mundo por diversas razões. Os efeitos ao retardador provocados pela política de COVID zero a todo o preço, rebaixando o produto potencial chinês, continuam a estar na origem de disrupções consideráveis de oferta. A crise especulativa do imobiliário chinês não pode mais ser escamoteada pelo regime, estando aliás indissociavelmente ligada ao agravamento da desigualdade de distribuição do rendimento e à criação de condições para todo o tipo de investimentos especulativos. Nos últimos dias, o espectro da deflação surgiu nos radares dos analistas chineses e a história recente mostra-nos que, na Ásia, recorde-se o Japão dos anos 90 e inícios do milénio, as deflações apresentam um quadro temporal muito longo, o que adensa as preocupações. Com toda esta densidade temática à mistura não espanta que um novo debate tenha surgido na intelectualidade americana, cada vez mais focada no acompanhamento das peripécias de evolução da economia chinesa, dado o posicionamento ambíguo da administração Biden quanto a esta matéria. Retórica política agressiva, por um lado, e sucessivas missões de gente importante, por outro, para dar uma no cravo e outra na ferradura e assim não quebrar de chofre os inúmeros laços que continuam a ligar as duas economias.)

O debate a que me refiro está concentrado em dois economistas, Adam Posen presidente do prestigiado Peterson Institute for International Economics e Michael Pettis, coautor com Mattew Klein do excelente Trade Wars are Class Wars. Os principais argumentos foram lançados por Posen num artigo recente da Foreign Affairs (“The end of China’s economic miracle”) e os de Pettis resultam de uma longa sequência de tweets, mais propriamente quinze, no agora X e não Twitter (ou as maluqueiras do Musk que parece não ter mais nada para fazer do que praticar a estupidez sob a forma de desporto de competição).

Este confronto de ideias é relevante sobretudo do ponto de vista do estudo das condições e limites dos regimes autoritários em matéria de crescimento económico. Esta questão nunca foi totalmente resolvida, já que os regimes autoritários, regra geral, não integram o naipe de fatores de crescimento mais referenciados pela literatura, apesar de pelo menos em alguns períodos alargados de tempo apresentarem como o modelo chinês resultados impressionantes que dariam para baralhar toda uma teoria.

A argumentação de Posen é diríamos mais convencional e ortodoxa, podendo resumir-se assim. Finalmente, o regime chinês dá mostras de revelar o que estaria anunciado nos livros: chega uma altura em que o regime não consegue fornecer ao setor privado os incentivos suficientes para impulsionar decisivamente o ritmo de crescimento. E essa impossibilidade deriva precisamente da natureza do regime. Segundo Posen, teríamos assim uma espécie de crónica anunciada da falência económica de todos os regimes autoritários, dada a impossibilidade lógica de substituição integral da iniciativa privada pelos mecanismos de intervenção do Estado em diferentes escalas territoriais. Esta tese tem a sua lógica compreensível, mas no caso chinês enfrenta uma dificuldade de monta. Afinal, o regime conseguiu durante um largo período de tempo ritmos impressionantes de crescimento económico, resolvendo aparentemente os problemas de incentivos. O que explica então que depois de um largo espaço de tempo surjam essas dificuldades? Poderá sempre mencionar-se que a política do COVID zero terá contribuído para o agravamento da confiança da população no regime e assim perturbar ainda mais o problema dos incentivos para a manutenção de ritmos elevados de crescimento económico.

Pelo contrário, o argumento de Pettis foca-se no comportamento estrutural da economia chinesa e sobretudo no problema grave do incremento da desigualdade na distribuição do rendimento: “É a diminuição do rendimento disponível das famílias e consequentemente da procura efetiva que constitui o problema de raiz da economia chinesa. A quota de consumo continua exasperadamente baixa e o peso do investimento altamente inflacionado. O problema económico da China observa-se do lado da procura com as famílias e consumidores, não do lado da oferta (com os proprietários dos negócios e investidores).”

Sou bastante mais sensível ao desafio da mudança estrutural de Pettis do que ao impasse autoritário de Posen. A taxa de investimento (Investimento total/PIB) foi sistematicamente alta na China (e aliás em todos os países asiáticos) durante um largo período de tempo, sempre acima dos 30%, o que é uma barbaridade de alocação de recursos. A manutenção desse ritmo infernal de investimento não está ao alcance de muitos. Os principais analistas referem que esse peso de investimento foi possível enquanto a economia chinesa prosseguiu uma prática sistemática de modernização e substituição de infraestruturas, podendo entender-se que pode entrar em período de rendimentos decrescentes quando o modelo económico se torna mais intensivo e mais baseado em conhecimento do que em infraestruturas. Quando se torna necessário que os investimentos em equipamento tomem a dianteira às infraestruturas, os trade-offs entre investimento público e privado tornam-se mais visíveis e a questão dos incentivos ganha obviamente relevância.

A economia chinesa parece ter pretendido prolongar para lá do aceitável a dimensão do infraestrutural e com rendimentos decrescentes dos investimentos a questão do modelo de financiamento baseado no endividamento enfrenta dificuldades.

O que para mim é relevante é que mesmo num regime político repressivo e autoritário (a política de COVID zero só nesse contexto era viável) as questões estruturais da distribuição do rendimento e da procura não podem ser ignoradas. Se o modelo chinês vai ou não na rigidez do regime encontrar as saídas para uma mudança estrutural mais consequente poderá favorecer um determinado rumo para o debate. Compreende-se que do ponto de vista da retórica política americana, a tese do impasse do modelo autoritário reúne as preferências. Mas creio que está claro para todos que esse não é o ponto de vista deste blogue. Interessa-nos mais a mudança estrutural dos países independentemente do regime que a promove. Até porque ainda não concebi entender verdadeiramente o que pensa fazer de facto a administração Biden quanto à China, tantas no cravo e na ferradura têm sido dadas.

Nota complementar (16.08.2023)

Já depois de ter concluído a redação do post, Matthew Klein no OVERSHOOT junta-se à reflexão, referindo que a China está agora a crescer menos do que os EUA, o que parece uma invenção mas não é, é pura realidade.

 

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