sexta-feira, 18 de agosto de 2023

TEMPO E POBREZA

 


(Certamente já perceberam que a minha relação com as férias de agosto, e decididamente em agosto não gosto de viajar para qualquer lado, gira muito em torno de uma modorra de procrastinação, com várias rotinas que me dispenso de partilhar convosco, mas que tem na leitura simultânea do New York Times na versão digital e na versão em papel da edição internacional um dos seus pontos altos. É raro o dia que essa leitura não me proporciona inspiração para as reflexões do blogue em férias. Regra geral dou assim como um bom investimento a duplicação de assinar a versão digital e ler a edição em papel. A rotina da procrastinação assim o exige. É este o caso do tema para a reflexão de hoje, inspirado por um artigo de um escritor americano, Esau MacCaulley de sua graça e autor de um livro recente, do qual já tinha ouvido falar e designado de “HOW FAR TO THE PROMISED LAND”. O artigo que inspirou esta reflexão tem um título substancialmente diferente: “Time is a hidden currency of incalculable worth” (O tempo é uma moeda oculta com um valor incalculável”). 

Devo reconhecer que, apesar da minha proximidade aos problemas sociais, sobretudo na qualidade de avaliador de políticas públicas, a relação entre o tempo e a pobreza nunca se me tinha colocado com tanta clareza e interesse de aprofundamento.

Aliás, entre os mitos que os detratores das políticas sociais gostam de cultivar para aliviar as suas consciências (para os crentes a confissão resolve o problema) está frequentemente a ideia de que entre a pobreza, a inação e a preguiça há relações mal estudadas.

Ora, ao contrário do que esses propagadores de mitos pensam, uma das grandes dimensões da pobreza é precisamente a luta implacável contra o tempo, procurando maximizar todas as formas e oportunidades possíveis de acumulação de rendimento para lograr atingir um bolo suscetível de assegurar a sobrevivência pessoal e da família.

Contava-me há longos anos o Professor Nuno Grande que praticava medicina familiar e especializada para um universo muito diversificado de grupos sociais e que o fazia com um tempo de consulta impossível de ser praticado em modelos de prestação de serviço médico por objetivos que um dos elementos que mais o impressionava quando avaliava o material das suas consultas era a intensidade com que a multi-atividade era praticada. Dizia-me o saudoso clínico que era raríssimo o caso de doentes apenas com uma atividade, a regra era a pluriatividade e mesmo em situação de reforma esse padrão emergia com toda a força da sua evidência. Concluíamos então que isso era um fator explicável pelo baixo rendimento dos portugueses que tinham de procurar em extensão do tempo os complementos de rendimento de que necessitavam.

Esau MacCaulley propõe-nos um conceito de sociedade saudável com o qual me identifico: “Podemos definir uma sociedade saudável como aquela em que todos têm acesso a um lugar para estar, alimentação para comer e tempo para gozar os resultados do seu trabalho com aqueles que são o motivo do seu trabalho. Um salário de vida deve ser aquele em que existe espaço para alguma coisa para além do trabalho”.

Esta definição constitui uma boa aproximação às ideias de trabalho e de vida decentes.

O que as modernas sociedades ocidentais nos transmitem é que o problema de encontrar um equilíbrio entre uma dada remuneração e a possibilidade de dispor livremente do tempo (chamemos-lhe lazer, liberdade de alocação do tempo ou o que quiserem) começa a ser relevante apenas a partir de limiares de rendimento elevados. Tudo acontece como se essa prorrogativa fosse um privilégio dos mais abastados e totalmente proscrito aos indivíduos de rendimentos mais baixos aos quais a sociedade não concede esse privilégio e os obriga a uma luta implacável contra o tempo, reduzindo a limiares nefastos o tempo de convivência com os seus, designadamente com os filhos mais novos, mas também os amigos no quadro de uma socialização saudável.

A pergunta inteligente que o artigo do NTY nos coloca é se tem de ser necessariamente assim. Será que as políticas públicas de apoio à pobreza terão de estar necessariamente circunscritas a diferentes formas de ajuda material? Será que a relação remuneração-tempo deve ser encarada como uma manifestação existencial dos mais abastados?

Mas com que critério definimos o limiar de rendimento abaixo do qual a submissão ao tempo é implacável e acima do qual se admite a existência de múltiplos equilíbrios? Será que a compreensão integrada da pobreza e a combinação de diferentes componentes para a reduzir tem necessariamente de retirar o tempo da equação? Não existem questões de exclusão associadas aos filhos de gente pobre que seriam melhor abordadas com mais tempo disponível para os pais acompanharem e apoiarem os seus filhos?

Pelo tipo de questões colocadas percebem a abertura de perspetivas que a leitura do artigo me suscitou, numa simples modorra de procrastinação de agosto e preparando o palato para um linguado fresquinho a saber a mar na Gaivota.

 

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