terça-feira, 22 de agosto de 2023

CANÍCULA E O VETO DO PRESIDENTE

 


(Por estas terras litorais do Alto Minho não é vulgar uma canícula como a de hoje e vale-me uma casa bem construída com pedra que chegue e sobretudo com o investimento numas claraboias de vidro duplo e refletor associado que transformou radicalmente a temperatura interna e me acolhe com relativa frescura nesta tarde com temperaturas acima dos 35º. Nestes dias que prolongam a modorra estival, apetece dizer por uns dias que Moledo é uma praia aprazível e há que encontrar um tema para o post de hoje. Embora o meu estado de irritação quase permanente com o papagaio Marcelo esteja a chegar ao seu ponto máximo, e a canícula é má conselheira para digerir a irritação contra papagaios palradores, lá terei de me pronunciar sobre o veto político ao pacote Mais Habitação.

Devo começar por dizer que não tenho grandes e substanciais ideias adicionais ao que já escrevi neste blogue em 17de fevereiro sobre o conjunto de medidas de política de habitação, então assumidas em Conselho de Ministros e que se arrastaram até ao veto político do Presidente, passando pela Assembleia da República durante este longo período.

A minha principal observação crítica assentou então na perplexidade de dar com um conjunto de medidas que pareciam ignorar os elementos de estratégia e de política de habitação que o governo PS desenhara com a Resolução de Conselho de Ministros relativa à chamada Nova Geração de Políticas de Habitação, da qual emergiam programas como o 1º Direito (com a novidade das Estratégias Locais de Habitação) e o Arrendamento Acessível, que necessitavam de um novo fôlego de aplicação, para incorporar entre outros aspetos elementos de avaliação entretanto realizados (como manifestação de conflito de interesses há que referir que fui responsável pela avaliação do Programa 1º Direito e que colegas meus na Quaternaire Portugal realizaram também a avaliação do Arrendamento Acessível). Em vez de prosseguir a procura de um novo fôlego para esse quadro de novas políticas de habitação, o Governo meteu-se por atalhos de circunstância, optando por medidas com significativos custos de transação, como a proposta do arrendamento forçado com entrada de leão e saída de sendeiro), perdendo a ideia de floresta de instrumentos de política.

Além disso, o pacote Mais Habitação ignorou as dificuldades do contexto do mercado de construção civil, em que a rarefação de empresas (o número de empresas que não regressou ao mercado após a pandemia é relevante), a subida galopante dos custos de construção e as dificuldades de mão de obra observadas em praticamente todo o território nacional constituem poderosos entraves a uma mais rápida implementação dos projetos de construção, designadamente dos que têm apoio de Fundos Europeus ( caso do 1º Direito a partir de financiamentos PRR).

Mas o que me irrita mais em toda esta controvérsia do Mais Habitação, em que todo o bicho careta de partido político se pronuncia sem nunca ter produzido uma ideia relevante que fosse em termos de política de habitação, é a profunda hipocrisia com muita gente usa a ideia de mercado para criticar o conjunto de medidas. De facto, se estivermos atentos a todas as manifestações conhecidas de desequilíbrio do mercado de habitação (preços especulativos de m2 de construção para venda e de arrendamentos gerando uma significativa procura social insolvente de habitação, escassez de oferta para casais de rendimento mediano em início de vida, efeitos perversos da procura de não residentes com rendimentos muito mais elevados do que o rendimento médio português e de programas como os vistos gold e nómadas digitais, fuga para o alojamento local como fonte relevante de novos rendimentos familiares, só para mencionar os mais importantes) todas essas manifestações apontam direitinhas para funcionamento viciado e perverso do mercado. Ou seja, caros liberais de pacotilha, se há mercado cujo funcionamento revela falhas de grandeza incomensurável é o de habitação. Ou seja, se existe uma procura social insolvente de habitação que não encontra no mercado oferta para a satisfazer isso significa que o mercado não está a funcionar. Por conseguinte, é uma total hipocrisia clamar como virgens ofendidas que precisamos de mais mercado.

Esta é uma dimensão que o programa do PS começou por equacionar na Nova Geração de Políticas de Habitação e à qual perdeu o fio condutor. Num contexto, em que o funcionamento do mercado é perverso, é de investimento público em habitação que devemos falar, obviamente a custos controlados e com atenção redobrada à sustentabilidade e não de estratagemas para atrair a atenção de uma iniciativa privada que já deu mostras de não conseguir sair da perversidade.

Dispenso-me de discutir aqui as inúmeras formas de intervenção e de investimento público para colmatar as falhas de mercado da habitação. Não se entende por isso que o Governo pareça depender em absoluto dos Fundos Europeus para garantir esse investimento. Sabemos que os Fundos são atrativos mas que implicam fortes custos de transação e controlo e por isso não entendo que modalidades de financiamento a transpor para o Orçamento Geral de Estado ou de recurso ao Banco Europeu de Investimentos sejam ignoradas e não mobilizadas.

Diz o Presidente que o Programa ficou aquém dos acordos interpartidários que era possível desenvolver. Talvez seja uma dimensão a contemplar, mas em meu entender só depois de erradicada toda a hipocrisia sobre as falhas de mercado e a perversidade da iniciativa privada que se passeia por aí. Só com um forte investimento público será possível infletir preços especulativos e obviamente investimento público não significa que o Estado seja um senhorio ou proprietário para todo o sempre.

Por tudo isto e sem ignorar que assiste todo o direito a que o Governo insista no pacote de medidas que propôs, seria altura dessa retoma ser acompanhada de um discurso político suficientemente convincente para marcar a diferença e combater a referida hipocrisia dos que se negam a reconhecer a perversidade do mercado.

Mas devo reconhecer que esta Ministra é frágil, porque começou frágil.

Assim sendo, Marcelo promulgará contra a vontade e rebolar-se-á de gozo quando alguns dos seus argumentos se tornarem realidade.

E como diria o Outro, não havia necessidade, até porque existe no PS capital de conhecimento suficiente para fazer melhor. Se em fevereiro a pressa era desincentivadora, em setembro, passado tanto tempo (qual a pressa?) haveria condições para fazer melhor.

 

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