quarta-feira, 17 de junho de 2020

MIL E UMA MANEIRAS DE NÃO APROVEITAR O CONHECIMENTO



(Vai-me faltando a pachorra para aturar as nossas polémicas de trazer por casa como foi a suscitada em torno de António Costa e Silva e do Plano de Recuperação Económica que o governo estará a preparar. O meu colega de blogue já o tinha acertadamente assinalado e quero insistir na mesma mensagem, com incorporação de dados novos neste caso da vizinha Espanha.)

Um dos dramas mais frequentes das economias menos desenvolvidas ou em exigentes processos de transformação estrutural (como é o nosso caso) radica na evidência de que esses países são muitas vezes incapazes de mobilizar o conhecimento que neles existe. Como o meu título sugere, haverá mil e uma maneiras de desperdiçar esse conhecimento. Algumas das formas de desperdício são clássicas: incapacidade de conviver com argumentos e evidências contrárias aos poderes dominantes, perseguição política de intelectuais identificados como adversários políticos, instrumentalização excessiva do conhecimento, sobreposição indevida entre os mecanismos do conhecimento científico e da decisão política, intelectuais demasiado “estrangeirados” e sem sensibilidade para compreender os problemas nacionais, vazios criados no passado entre política e conhecimento com demasiada inércia para serem superados e muitas outras.

Enquanto alguém que já participou em alguns desses processos tenho a dizer que alguns “mixed feelings” atravessam a minha mente. Em primeiro lugar, porque a parte política começa por apresentar essas colaborações de forma algo irritante, das quais a mais comum é a da apresentação como  grupos de “sábios”. Depois, porque regra geral acontecem em períodos eleitorais e em algumas iniciativas cheira a pura instrumentalização mediática. Uma das exceções a essa regra foram os primeiros Estados Gerais em que houve participação generosa e convivo bem com a ideia de que esses processos constituem por vezes oportunidades para a emergência política de algumas personalidades que passam do conhecimento à vida política. É uma forma de rejuvenescer a classe política e isso é só por si algo de nobre e valioso. Da generalidade dos processos em que tenho participado retiro uma lição: participação honesta nos princípios e sem expectativas muito altas de que a nossa participação impactará decisivamente o mundo da política. Por vezes basta uma ideia que ganha asas do ponto de vista político e isso chega para justificar os custos do envolvimento, relembrando que muitos destes processos acontecem por Lisboa (pré COVID) e que há gente que marca reuniões como se toda a gente vivesse nas avenidas novas ou nas imediações da Gulbenkian.

No plano internacional, entre as economias mais avançadas há uma tradição de mobilização desse conhecimento, de economistas e não só. Quem não conhece as personalidades que passaram pelo Council of Economic Advisors dos EUA e algumas das suas presidências mais sonantes? O Governo alemão tem também essa prática e a literatura económica tem evidências de resultados notórios de grupos de trabalho constituídos pelo grupo de economistas conselheiros de Merkel. Em França existe também uma tradição de constituição de grandes painéis com gente de grande notoriedade até a nível mundial, não apenas de economistas, mas envolvendo uma maior interdisciplinaridade do que a dos casos americano e alemão anteriormente referidos. Há também a registar, não apenas em França, a presença dos think-tanks que direta ou indiretamente acabam por influenciar a ação governativa.

Em Espanha, foi hoje revelado pelo El País (link aqui) a existência de um coletivo alargado de economistas espanhóis que tem trabalhado em Moncloa com o grupo de prospetiva pós COVID do Governo de Sánchez, cobrindo as cátedras de análise económica de muitas universidades espanholas e envolvendo também personalidades a trabalhar em inúmeras instituições internacionais.

Cá pelo burgo a SEDES já viveu melhores dias, a Gulbenkian continua a organizar algumas iniciativas com impacto público e o Institute of Public Policy Thomas Jefferson (ao qual está associado o nome de Paulo Trigo Pereira), com ligações ao ISEG, é praticamente o único think-tank com possibilidade de exercer alguma influência.

Em dissonância com as experiências atrás assinaladas, António Costa terá optado pelo modelo de “one man”, António Costa e Silva, com um curriculum invejável e para mim bastaria o facto dele ter passado estoicamente pela situação de preso político em Angola para granjear o meu respeito, independentemente de nunca com ele ter contactado e não ter qualquer informação privilegiada sobre a personalidade. Mas não deixa de ressaltar a natureza diferenciada do modelo. Espero que não tenhamos uma nova evidência de que os menos desenvolvidos são os que tendem a aproveitar menos e pior o conhecimento disponível. Ou António Costa terá tido a intuição de que os “sábios” estão desacreditados ou cansados de ser instrumentalizados? Seria estranho que assim acontecesse até porque em matéria de pandemia se registou uma visão muito prudencial das relações entre a política e o conhecimento, que aqui registei como algo de novo e saudável.

Porque será que a economia tem de estar fora dessa gestão prudencial do conhecimento? Alguém me explica?

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