quinta-feira, 4 de junho de 2020

REGRESSO A HANNAH ARENDT



(Em tempos de autoritarismos, totalitarismos e democracias cada vez mais iliberais a porem as garras de fora, é natural que em busca de pensamento pertinente nos voltemos para alguns vultos dos anos 30 e 40. Estando nós, economistas, órfãos de referenciais, é na ciência política por mais inclassificáveis que sejam alguns dos seus expoentes que vamos buscar ajuda. Hannah Arendt é uma dessas referências.)

A pandemia tem sido madrasta para alguns dos expoentes do autoritarismo emergente e da progressiva iliberalização das economias. Os EUA, o Brasil e a Rússia não se têm dado bem com a matéria e só o facto de se tratar de países de grande dimensão tem almofadado a letalidade associada. Se é verdade que a Rússia apresenta uma letalidade relativamente baixa face ao número de infetados, os EUA e o Brasil, particularmente os primeiros, já ultrapassaram qualquer limiar de insensibilidade face ao número de mortes. A primeira página do New York Times com os nomes dos 100.000 mortos pela pandemia (onde eles já vão) será seguramente recordada daqui a muitos anos como um marco da incompetência e frivolidade do poder.

Mas o fenómeno dos autoritarismos emergentes, alguns deles assentes em verdadeiras plutocracias, é não só anterior à pandemia como certamente lhes sobreviverá. Concomitantemente, a fragilidade das democracias liberais revela-se hoje superior à que algum dia imagináramos como possível. Num artigo publicado na New York Review of Books de 2 de maio de 2019, Paul Mason afirmava que, nesse contexto de incómoda surpresa, o regresso ao pensamento de escritores e ensaístas humanistas dos anos 40 e 50 surgia como uma espécie de tábua de salvação para quem busca desesperadamente referenciais para compreender a deriva autoritária e iliberal que avança pelas democracias dentro.

É neste quadro que vem à tona das nossas memórias a obra da filósofa política Hannah Arendt, nascida na Alemanha e refugiada nos EUA escapando do totalitarismo nazi. Muita gente se recorda da reportagem de culto de Arendt que a ensaísta realizou para a New Yorker a propósito do julgamento do nazi Eichmann em Jerusalém. O Babelia (El País) (link aqui) deste último fim de semana dedicou-lhe um conjunto alargado de artigos sobre a sua obra, destacando sobretudo o seu pensamento em torno das origens do totalitarismo. O que não será por mero acaso.

Num artigo de 1953, publicado dois anos depois de As Origens do Totalitarismo ter sido publicado em inglês, designado de “Ideology and Terror: a Novel Form of Government” ([1]Hannah Arendt disserta sobre a preparação das condições favoráveis à emergência do pensamento e poder totalitários. Isso aconteceria essencialmente quando um número suficientemente elevado de pessoas perde os contactos seja com as outras pessoas, seja com a realidade que os rodeia, perdendo simultaneamente a capacidade da experiência e do pensamento. E, numa antecipação impressionante dos tempos modernos, Arendt identifica essa massa de pessoas “como aquelas para as quais a distinção entre factos e ficção (isto é a realidade da experiência) e a distinção entre o verdadeiro e o falso (isto é os padrões de pensamento) deixa de existir”.

Como sabemos, a evidência social e histórica que atravessa todo o pensamento de Arendt é oferecida pela ascensão do nazismo e do estalinismo, o que nos pode sugerir cautelas no reconhecimento do caráter pioneiro (67 anos são obra de antecipação no tempo) do alerta de Arendt para compreender os totalitarismos de hoje. O que é curioso é que Arendt, escrevendo a partir da sua residência e atividade letiva nos EUA, considerava a sociedade americana como uma estrutura social capaz de resistir e bloquear qualquer tentativa de um surto totalitário. Quando ouvimos os testemunhos patéticos de apoiantes de Trump e de Bolsonaro, compreendemos que no caso dos primeiros novas condições emergiram na sociedade americana de modo a contrariar todo o otimismo e confiança da ensaísta alemã nas características da sociedade americana e na sua capacidade de resistência de qualquer processo totalitário.

Curiosamente, no artigo de 1953, Arendt disserta sobre as diferenças entre as condições de isolamento e de solidão. E esta citação é lapidar do modo como trabalha os dois conceitos:

Enquanto que o isolamento respeita apenas à dimensão política da vida, a solidão respeita à vida humana como um todo. O governo totalitário, como todas as tiranias, só pode seguramente existir destruindo a dimensão política da vida, ou seja, destruindo isolando os homens as suas capacidades políticas. Mas a dominação totalitária como forma de governo é nova não apenas porque não considera suficiente esse isolamento e também destrói a vida privada. Baseia-se também na solidão, na experiência de não pertencer de todo ao mundo, o que está entre as mais radicais e desesperadas experiências humanas.”

Paul Mason terá certamente razão quando nos diz que para compreender os totalitarismos de hoje não basta ler Hannah Arendt (link aqui). Estará seguramente a pensar na sua incapacidade de antecipar os mecanismos que estão a degradar a democracia americana. Sim, talvez não seja uma condição suficiente. Mas que ao lê-la um conjunto amplo de novas reflexões se abrem.

A solidão e o modo como a paleta variada de truques e falsidades a manipula não estará bem presente naquela massa de alucinados para os quais 100.000 mortes e picos não são suficientes para devolver Trump ao caixote do lixo da história?


[1] Para os que tenham acesso gratuito à base bibliográfica JSTOR o artigo está lá disponível. Encontrei uma alternativa na Wikipédia, enquanto artigo de uma coletânea (link aqui)

Sem comentários:

Enviar um comentário