(Em tempos de autoritarismos, totalitarismos e
democracias cada vez mais iliberais a porem as garras de fora, é natural que em
busca de pensamento pertinente nos voltemos para alguns vultos dos anos 30 e 40.
Estando nós, economistas, órfãos de referenciais, é na
ciência política por mais inclassificáveis que sejam alguns dos seus expoentes
que vamos buscar ajuda. Hannah Arendt é uma dessas referências.)
A pandemia tem sido madrasta para alguns dos expoentes do autoritarismo emergente
e da progressiva iliberalização das economias. Os EUA, o Brasil e a Rússia não
se têm dado bem com a matéria e só o facto de se tratar de países de grande
dimensão tem almofadado a letalidade associada. Se é verdade que a Rússia
apresenta uma letalidade relativamente baixa face ao número de infetados, os
EUA e o Brasil, particularmente os primeiros, já ultrapassaram qualquer limiar
de insensibilidade face ao número de mortes. A primeira página do New York
Times com os nomes dos 100.000 mortos pela pandemia (onde eles já vão) será
seguramente recordada daqui a muitos anos como um marco da incompetência e
frivolidade do poder.
Mas o fenómeno dos autoritarismos emergentes, alguns deles assentes em
verdadeiras plutocracias, é não só anterior à pandemia como certamente lhes
sobreviverá. Concomitantemente, a fragilidade das democracias liberais
revela-se hoje superior à que algum dia imagináramos como possível. Num artigo
publicado na New York Review of Books de 2 de maio de 2019, Paul Mason
afirmava que, nesse contexto de incómoda surpresa, o regresso ao pensamento de
escritores e ensaístas humanistas dos anos 40 e 50 surgia como uma espécie de
tábua de salvação para quem busca desesperadamente referenciais para
compreender a deriva autoritária e iliberal que avança pelas democracias dentro.
É neste quadro que vem à tona das nossas memórias a obra da filósofa
política Hannah Arendt, nascida na Alemanha e refugiada nos EUA escapando do
totalitarismo nazi. Muita gente se recorda da reportagem de culto de Arendt que
a ensaísta realizou para a New Yorker a propósito do julgamento do nazi
Eichmann em Jerusalém. O Babelia (El País) (link aqui) deste último fim de semana
dedicou-lhe um conjunto alargado de artigos sobre a sua obra, destacando
sobretudo o seu pensamento em torno das origens do totalitarismo. O que não
será por mero acaso.
Num artigo de 1953, publicado dois anos depois de As Origens do
Totalitarismo ter sido publicado em inglês, designado de “Ideology and
Terror: a Novel Form of Government” ([1]Hannah
Arendt disserta sobre a preparação das condições favoráveis à emergência do
pensamento e poder totalitários. Isso aconteceria essencialmente quando um
número suficientemente elevado de pessoas perde os contactos seja com as outras
pessoas, seja com a realidade que os rodeia, perdendo simultaneamente a
capacidade da experiência e do pensamento. E, numa antecipação impressionante
dos tempos modernos, Arendt identifica essa massa de pessoas “como aquelas para
as quais a distinção entre factos e ficção (isto é a realidade da experiência)
e a distinção entre o verdadeiro e o falso (isto é os padrões de pensamento)
deixa de existir”.
Como sabemos, a evidência social e histórica que atravessa todo o
pensamento de Arendt é oferecida pela ascensão do nazismo e do estalinismo, o
que nos pode sugerir cautelas no reconhecimento do caráter pioneiro (67 anos
são obra de antecipação no tempo) do alerta de Arendt para compreender os
totalitarismos de hoje. O que é curioso é que Arendt, escrevendo a partir da
sua residência e atividade letiva nos EUA, considerava a sociedade americana
como uma estrutura social capaz de resistir e bloquear qualquer tentativa de um
surto totalitário. Quando ouvimos os testemunhos patéticos de apoiantes de
Trump e de Bolsonaro, compreendemos que no caso dos primeiros novas condições
emergiram na sociedade americana de modo a contrariar todo o otimismo e
confiança da ensaísta alemã nas características da sociedade americana e na sua
capacidade de resistência de qualquer processo totalitário.
Curiosamente, no artigo de 1953, Arendt disserta sobre as diferenças entre
as condições de isolamento e de solidão. E esta citação é lapidar do modo como
trabalha os dois conceitos:
“Enquanto que o isolamento respeita apenas
à dimensão política da vida, a solidão respeita à vida humana como um todo. O
governo totalitário, como todas as tiranias, só pode seguramente existir
destruindo a dimensão política da vida, ou seja, destruindo isolando os homens as
suas capacidades políticas. Mas a dominação totalitária como forma de governo é
nova não apenas porque não considera suficiente esse isolamento e também destrói
a vida privada. Baseia-se também na solidão, na experiência de não pertencer de
todo ao mundo, o que está entre as mais radicais e desesperadas experiências
humanas.”
Paul Mason terá certamente razão quando nos diz que para compreender os
totalitarismos de hoje não basta ler Hannah Arendt (link aqui). Estará seguramente a pensar
na sua incapacidade de antecipar os mecanismos que estão a degradar a democracia
americana. Sim, talvez não seja uma condição suficiente. Mas que ao lê-la um
conjunto amplo de novas reflexões se abrem.
A solidão e o modo como a paleta variada de truques e falsidades a manipula
não estará bem presente naquela massa de alucinados para os quais 100.000
mortes e picos não são suficientes para devolver Trump ao caixote do lixo da
história?
[1] Para os que
tenham acesso gratuito à base bibliográfica JSTOR o artigo está lá disponível. Encontrei
uma alternativa na Wikipédia, enquanto artigo de uma coletânea (link aqui)
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