quinta-feira, 18 de junho de 2020

RECUPERAR EM MODO VERDE OU ASSIM-ASSIM?



(A saída de uma crise abre sempre um mar de oportunidades, embora a saída valha por si dada a necessidade de repelir a penosidade da própria crise. A recuperação da crise pandémica está cheia de particularidades, já que é necessário recuperar economicamente evitando que uma recidiva pandémica nos lance de novo no abismo económico. Apesar de tudo isso não podemos ignorar uma outra questão: recuperar sim mas como e em que modo?)

Os grandes problemas estruturais que assolavam as sociedades mundiais antes do COVID-19 não desapareceram por magia ou foram por ele esmagados, desaparecendo da mesa das preocupações. Só para refrescar memórias mais leves basta pensar na (i) recomposição dos empregos  e das competências ditada pelas últimas ondas do progresso tecnológico (automação, robotização, digitalização, inteligência artificial), (ii) populismo assanhado e autoritário e degenerescência das democracias, (iii) desigualdade endémica, (iv) ameaças climáticas, (v) desequilíbrios da dívida, (vi) desemprego jovem, (vii) sociedade do envelhecimento e tantas outras. Alguns destes problemas estruturais carecem de uma nova leitura depois de levarmos em cima com a crise pandémica, certamente que emergiram algumas oportunidades para os afrontar, nas seguramente também que outros assumiram proporções mais graves (desigualdade, por exemplo).

Não parece assim indiferente ignorar o modo e em que direção se recupera. As questões relativas à ameaça climática e à necessidade de descarbonizar as economias, enveredando por modelos mais verdes de alocação de recursos tiveram compreensivelmente em tempos de pandemia uma nova leitura. Os efeitos da pandemia e do confinamento mostraram cruelmente a impossibilidade global de uma resolução do problema por via do crescimento zero, tout court. Foi bonito ver os níveis de poluição ambiental a descerem brutalmente, as cidades a assumir novas perspetivas e configurações, redescobrimos coisas que pareciam perdidas e até a vida animal recuperou fôlego ousando de novo pisar caminhos anteriormente vedados pela descontrolada presença humana. Mas nesses meses e meio e pese embora a resposta rápida dos poderes públicos para controlar a crise social, foi fácil perceber que esse oásis ambiental coexistia para muita gente com o regresso do fantasma da pobreza. E, como aliás o lembrei num post específico, os protagonistas da inércia ambiental com Trump à cabeça apressaram-se a brandir o argumento imbecil de que “é assim que querem resolver a questão ambiental?”.

A saída da crise poderia assim conduzir-nos a uma mais cuidada revisão dos padrões do nosso crescimento económico, ou seja, do conteúdo de sustentabilidade que um emprego criado nos oferece. Dirão alguns que isso é tarefa impossível dada a necessidade de recuperar rapidamente e, assim, não prolongar a agonia dos fortemente penalizados com o confinamento. Para complicar, a relação entre desconfinar e ganhar confiança é um jogo complexo, que não terá sempre resultados risonhos. Ou seja, por cada manifestação de confiança excessiva haverá um punhado de gente que necessitará de mais cautelas para poder ganhar a sua própria confiança (grupo em que me incluo).

Mas é aqui que a Comissão Europeia tem um campo de intervenção decisivo. Sou dos que pensa (oxalá a minha intuição esteja certa) que a recuperação europeia a atingir com o Plano ainda em discussão acesa não nos fará regressar aos tempos da condicionalidade dos ajustamentos tipo TROIKA. Mas defendo que terá de haver uma condicionalidade e essa não pode deixar de ser a das prioridades europeias, claro que devidamente interpretadas à luz da situação estrutural das economias em concreto (e como a economia portuguesa precisa dessa perspetiva!). Ora, não me choca de todo, antes recomendo, que a recuperação com o apoio da Comissão Europeia tem que atribui prioridade máxima aos investimentos que vão na linha de uma economia mais verde e descarbonizada. É o que eu chamo uma condicionalidade saudável, mesmo que a descarbonização tenha de ser lida á luz do estádio de desenvolvimento de cada economia. Seria uma estupidez crassa permitir que os fundos europeus contribuam para a inércia dos combustíveis fósseis, dos padrões de ordenamento contrários ao cenário climático e dos comportamentos empresariais que prolonguem os velhos paradigmas energéticos. Ou seja, recuperar sim, mas em modo mais verde e limpo.

E já agora que estamos a falar de limpeza gostaria de me associar à última crónica do Rui Tavares no Público para manifestar a minha mais total incredulidade pela notícia de que o governo não desejaria afastar dos apoios públicos as empresas e sociedades com práticas reconhecidas de offshorização de capitais, independentemente de se tratar de recantos mais ou menos  negros da circulação oculta de capitais. O Partido Socialista é recorrente nestas tiradas e são tantas que ainda acabo a cortejar a Ana Gomes. Mas o que me espanta é a notícia ter passado praticamente despercebida. Há razões de interesse público que estão na base da decisão governamental? Gostaria de as conhecer. Até lá fico com a convicção de que a voz do Rui Tavares não pode ser silenciada.

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