(A saída de uma crise abre sempre um mar de
oportunidades, embora a saída valha por si dada a necessidade de repelir a
penosidade da própria crise. A recuperação da crise pandémica está cheia de
particularidades, já que é necessário recuperar economicamente evitando que uma
recidiva pandémica nos lance de novo no abismo económico. Apesar de tudo isso não podemos ignorar uma outra questão: recuperar sim
mas como e em que modo?)
Os grandes problemas estruturais que assolavam as sociedades mundiais antes
do COVID-19 não desapareceram por magia ou foram por ele esmagados, desaparecendo
da mesa das preocupações. Só para refrescar memórias mais leves basta pensar na
(i) recomposição dos empregos e das
competências ditada pelas últimas ondas do progresso tecnológico (automação,
robotização, digitalização, inteligência artificial), (ii) populismo assanhado
e autoritário e degenerescência das democracias, (iii) desigualdade endémica,
(iv) ameaças climáticas, (v) desequilíbrios da dívida, (vi) desemprego jovem, (vii)
sociedade do envelhecimento e tantas outras. Alguns destes problemas estruturais
carecem de uma nova leitura depois de levarmos em cima com a crise pandémica,
certamente que emergiram algumas oportunidades para os afrontar, nas
seguramente também que outros assumiram proporções mais graves (desigualdade,
por exemplo).
Não parece assim indiferente ignorar o modo e em que direção se recupera.
As questões relativas à ameaça climática e à necessidade de descarbonizar as
economias, enveredando por modelos mais verdes de alocação de recursos tiveram
compreensivelmente em tempos de pandemia uma nova leitura. Os efeitos da
pandemia e do confinamento mostraram cruelmente a impossibilidade global de uma
resolução do problema por via do crescimento zero, tout court. Foi
bonito ver os níveis de poluição ambiental a descerem brutalmente, as cidades a
assumir novas perspetivas e configurações, redescobrimos coisas que pareciam
perdidas e até a vida animal recuperou fôlego ousando de novo pisar caminhos anteriormente
vedados pela descontrolada presença humana. Mas nesses meses e meio e pese
embora a resposta rápida dos poderes públicos para controlar a crise social,
foi fácil perceber que esse oásis ambiental coexistia para muita gente com o
regresso do fantasma da pobreza. E, como aliás o lembrei num post específico,
os protagonistas da inércia ambiental com Trump à cabeça apressaram-se a
brandir o argumento imbecil de que “é assim que querem resolver a questão
ambiental?”.
A saída da crise poderia assim conduzir-nos a uma mais cuidada revisão dos
padrões do nosso crescimento económico, ou seja, do conteúdo de
sustentabilidade que um emprego criado nos oferece. Dirão alguns que isso é
tarefa impossível dada a necessidade de recuperar rapidamente e, assim, não
prolongar a agonia dos fortemente penalizados com o confinamento. Para
complicar, a relação entre desconfinar e ganhar confiança é um jogo complexo,
que não terá sempre resultados risonhos. Ou seja, por cada manifestação de confiança
excessiva haverá um punhado de gente que necessitará de mais cautelas para
poder ganhar a sua própria confiança (grupo em que me incluo).
Mas é aqui que a Comissão Europeia tem um campo de intervenção decisivo.
Sou dos que pensa (oxalá a minha intuição esteja certa) que a recuperação
europeia a atingir com o Plano ainda em discussão acesa não nos fará regressar aos
tempos da condicionalidade dos ajustamentos tipo TROIKA. Mas defendo que terá
de haver uma condicionalidade e essa não pode deixar de ser a das prioridades
europeias, claro que devidamente interpretadas à luz da situação estrutural das
economias em concreto (e como a economia portuguesa precisa dessa perspetiva!).
Ora, não me choca de todo, antes recomendo, que a recuperação com o apoio da
Comissão Europeia tem que atribui prioridade máxima aos investimentos que vão
na linha de uma economia mais verde e descarbonizada. É o que eu chamo uma condicionalidade
saudável, mesmo que a descarbonização tenha de ser lida á luz do estádio de
desenvolvimento de cada economia. Seria uma estupidez crassa permitir que os
fundos europeus contribuam para a inércia dos combustíveis fósseis, dos padrões
de ordenamento contrários ao cenário climático e dos comportamentos
empresariais que prolonguem os velhos paradigmas energéticos. Ou seja,
recuperar sim, mas em modo mais verde e limpo.
E já agora que estamos a falar de limpeza gostaria de me associar à última
crónica do Rui Tavares no Público para manifestar a minha mais total
incredulidade pela notícia de que o governo não desejaria afastar dos apoios
públicos as empresas e sociedades com práticas reconhecidas de offshorização
de capitais, independentemente de se tratar de recantos mais ou menos negros da circulação oculta de capitais. O
Partido Socialista é recorrente nestas tiradas e são tantas que ainda acabo a cortejar
a Ana Gomes. Mas o que me espanta é a notícia ter passado praticamente
despercebida. Há razões de interesse público que estão na base da decisão governamental?
Gostaria de as conhecer. Até lá fico com a convicção de que a voz do Rui Tavares
não pode ser silenciada.
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