sábado, 6 de junho de 2020

A ELITE CAPRICHOSA



(Costuma dizer-se que quanto mais apreciamos alguém mais irritados ficamos com as suas derivas. Gosto muito do que, regra geral a Clara Ferreira Alves escreve, sobretudo pelo estilo de desassombro, mas começa-me a irritar profundamente o seu “detachment” face ao país, traída por uma perceção distorcida da chamada elite lisboeta. Uma reportagem de guerra recomenda-se.)

No último Eixo do Mal, a felicidade incontida como Clara Ferreira Alves saudou os 70 anos de Jorge Palma, fazendo eco do seu privilégio de viver perto ou no mesmo prédio do nosso poeta cantor mais conhecido, deu bem conta do que significa a felicidade de viver no coração da corte.

A crónica Pluma Caprichosa de hoje revela a perturbação de uma elite que alimenta uma perceção do país através dos respetivos umbigos, muito incomodada com a maneira como esse país vai resistindo, aqui e ali com uma contradição, mas seguindo um padrão de desconfinamento que, nos seus contornos principais, vai seguindo as práticas europeias, com bom senso e gestão prudencial. Claro que a pressão da reabertura e da retoma económica se faz sentir mas quem é que imagina ser possível contornar a perda de 25% do PIB que Mário Centeno revelou esta semana na passagem de março para abril sem reconhecer a existência dessas pressões?

O estilo de escrita de CFA ganha embalagem e a partir de certo momento arrasta tudo com as suas perceções, construindo uma narrativa da realidade à medida dessas perceções. Um exemplo eloquente dessa torrente criativa é a sua descabelada referência aos Fundos Estruturais em Portugal, falando de uma matéria que decididamente não conhece, recorrendo a uma narrativa que um tresloucado populismo não desdenharia utilizar. Sim, mas como pertenço orgulhosamente a uma elite da capital tudo o que escrevo não é populista. Mas, cara Clara, o saco em que mete a aplicação dos Fundos Estruturais em Portugal é do mais apurado populismo, pois assenta na santa ignorância de uma elite que não mexe uma palha para compreender as grandes realizações que tem sido possível atingir com a ajuda dos Fundos Estruturais, seja na área das políticas de inovação, na área social e do insucesso escolar e do ensino profissional, por exemplo.

O discurso catastrofista desta elite regozija com a perspetiva de tudo ficar na mesma após a passagem da pandemia, se ela passar. Mas também aqui experimentará provavelmente alguns dissabores, porque alguma coisa vai mudar, simplesmente porque a procura não se apresentará nos mesmos moldes.

O nosso drama como país é que esta elite deixou de ter algum poder de comando e na prática no resto do país ninguém lhe dedica um momento de atenção sequer. No fundo, bem lá no fundo, só gente como eu, com algum respeito pelo pensamento dos outros ousa continuar a dedicar-lhe alguma atenção. Mas este populismo elitista é tão gravoso como o populismo boçal. Afinal reproduzem-se em narrativas da realidade à justa medida das suas distorcidas e mal informadas perceções. Nada mais do que isso e tudo cansa minha gente.

Sem comentários:

Enviar um comentário