sexta-feira, 19 de junho de 2020

O SENTIDO DAS PROPORÇÕES …



(Ou as desproporções sem sentido que poderia ser o título alternativo desta crónica. Ao contrário da sempre atenta Susana Peralta que equacionou o caso em função do atraso português na reabertura das escolas, o meu incómodo com o dossier UEFA é de ordem absoluta, ponto. O que me parece é que a grande festa governamental com o arraial da Champions em vez de servir os interesses que visava mostra pelo contrário um Governo na defensiva relativamente à gestão do COVID.)

Convenhamos que assistir à cerimónia oficial de congratulação pela decisão de trazer para Lisboa os últimos jogos da Champions com tal aparato e envolvimento das principais figuras do Estado incomoda pela desproporção evidente que pairou sobre aquela cerimónia. Todos sabemos que o cutelo que paira sobre o turismo nacional e sobre o que ele representa em termos de geração de valor acrescentado nacional e de exportações de serviços constitui uma ameaça de fazer perder o sono a qualquer primeiro-ministro. Podemos nos consolar dizendo que em toda a crise existe uma oportunidade e que as formas de turismo sustentável, de natureza ou rural irão ter no imediatamente após pandemia uma grande oportunidade. Mas, por mais importantes que essas formas de turismo  se assumam no futuro próximo e até no presente, não custa admitir que os grandes números que se fixam nas pequenas agendas dos ministros e nos players mais representativos do setor não são esses, mas antes os que são alimentados pelo transporte aéreo agora em suspenso.

As ameaças são de grande magnitude (ver artigo publicado no The Guardian) e por isso qualquer mezinha que possa contribuir para nuvens menos negras é politicamente entendida como tábua de salvação. Pode assim perguntar-se se a cerimónia UEFA é uma dessas tábuas de salvação, visando recuperar a imagem do país como destino turístico e fazer recordar 2004. Mas a pompa e circunstância com que a decisão UEFA foi anunciada é manifestamente desproporcionada e o furo na engrenagem esteve na alusão ao facto da decisão da UEFA representar uma homenagem aos profissionais de saúde em Portugal. Acho que deve haver algum efeito desconhecido sobre os neurónios provocados pelas câmaras de televisão.

A minha interpretação é um pouco mais pérfida. Em meu entender, o governo de António Costa está em matéria de COVID em má onda depois de ter andado pela crista da mesma. Tal como o já referi em comentários anteriores, o período atual da pandemia em Portugal está no fio da navalha: não permite, por um lado, estabilizar confiança no desconfinamento e, por outro, alimenta surtos suicidas como o de Lagos. Podemos discutir a irracionalidade ou injustiça das proibições de entrada de portugueses por alguns países da UE em função da dimensão dos novos casos diários que têm emergido em Portugal. Mas a decisão está tomada e enquanto durar deixa sequelas que abalam a gestão política prudencial que tem sido concretizada até agora. Não foi por acaso que, hoje, António Costa numa intervenção cuidada e minuciosa que realizou sobre essas proibições, citou a decisão UEFA como o melhor exemplo de que esses países estavam errados. Espanta o argumento, como se a UEFA e o futebol fossem exemplos credíveis de racionalidade e segurança.

Daí a minha pérfida interpretação: mais do que um impulso de imagem para Portugal, a vinda da fase final da Champions para Portugal é uma arma de defesa para um governo que passou a estar na defensiva em matéria COVID depois de ter revelado uma competente gestão política durante bastante tempo. Sobretudo, porque ninguém consegue antecipar em que condições concretas de disseminação pandémica vai a fase final decorrer em Portugal. Também porque ninguém consegue antecipar se será com público e com que público esse evento vai acontecer.

E lá regresso eu às capabilities. A gestão prudencial foi durante algum tempo uma dessas capabilities que explicou o relativo êxito de Portugal. Porquê então a inversão e se ter entrado em zigue-zague nessa gestão? Uma boa questão, já que os atributos e capacidades da persistência e a má convivência como o êxito são muitas vezes responsáveis pelas nossas saídas de estrada. Intuo que algo de similar está neste momento a acontecer.

Uma nota final, que é uma pergunta também incómoda:

Em tantos anos de democracia, ainda não deu para perceber que uma região de grande exposição ao exterior como o Algarve necessita de um hospital central e um sistema de saúde à prova de bala? Haverá algum português, por mais estúpido que seja, que tenha dificuldade em compreender esta evidência?

Bem sei que a representação política do Algarve definha há muitos anos, mas será que o interesse nacional, por vezes tão levianamente invocado, não compreende por si só esta necessidade?

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