(Já se compreendeu que com pandemia ou sem ela estamos em
tempos em que a geopolítica e a política económica regressam em força à gestão
dos equilíbrios mundiais. Com as dificuldades conhecidas, a União Europeia
procura transformar o seu posicionamento em algo menos reativo e mais
determinado. As relações com a sempre enigmática China estarão no
centro desse reposicionamento. É tempo de maior realismo, evitar os contágios
da imprevisibilidade e incompetência de Trump e de preparar os consumidores
europeus para um outro olhar sobre o conteúdo em importações do seu consumo. E
Portugal que se cuide pois ter ativos como a EDP e a REN nas mãos dos chineses
coloca-nos numa posição bastante difícil neste assomo negocial das autoridades
europeias.)
Temos de convir que a emergência da China na economia mundial foi
fragmentadamente compreendida pelo ocidente desenvolvido e em particular pela
União Europeia. Em tempos de bloqueios estruturais à procura mundial, as
perspetivas de penetração no vasto mercado interno chinês e a possibilidade da
deslocalização da produção, sabe-se lá por vezes com que parcerias, eram
suficientemente atrativas para assistir com alguma bonomia à emergência do
gigante chinês no mercado mundial. E, a verdade é que o ocidente nunca aprende,
uma outra convicção se juntou a esta bonomia. A generalização da participação
chinesa na economia de mercado mundial teria segundo alguns o efeito de
lentamente ir gerando uma classe média chinesa de grandes proporções e com isso
a progressiva transformação do regime económico chinês. Finalmente, um outro
argumento que vale sobretudo para os países de mais baixos salários, a
“invasão” pacífica chinesa de produtos de baixo preço permitia, embora à custa
da destruição de algumas empresas consideradas ineficientes, continuar a
reproduzir as condições de fraca remuneração do trabalho, construindo um modelo
de consumo ajustado às condições de rendimento. Quantas vezes tenho ouvido a
expressão proferida por gente operária ou trabalhando nos serviços mais básicos
dizer que frequentam o “Corte Inglês dos produtos chineses”.
A ilusão da transformação do regime económico chinês por via do mercado
mundial peca sobretudo por não ter percebido que, durante os tempos do Consenso
de Washington em que as forças do mercado livre ditaram as suas leis
internacionais para moldar os modelos económicos dos países, foram precisamente
os países não canónicos como a China que melhores resultados de crescimento
obtiveram. Pelo contrário, os continentes que mais alinharam com tais
princípios perderam em toda a linha. O regime chinês mostrou que era possível
através de um controlo férreo do capitalismo de Estado organizar as trocas, não
evitando a corrupção é certo, mas preservando as principais instituições
políticas e continuando a dominar a dinâmica evolutiva do comércio mundial.
A imprevisibilidade de Trump veio dinamitar a aparente posição de bonomia
face ao avanço chinês, primeiro com base em fracamente sustentados argumentos
de destruição de emprego americano pela invasão chinesa de produtos. O que
economistas sérios como Katz e Autor mostraram foi que esse impacto no emprego
e na desindustrialização americanos não podia ser ignorado, mas que era
francamente inferior ao provocado pela evolução do progresso tecnológico. Aliás
a combinação dos efeitos no emprego induzidos pelo progresso técnico e pela
internacionalização não é coisa fácil de isolar, dando sempre origem a
controversas interpretações sobre as técnicas mais adequadas para o conseguir.
A pandemia “veio a calhar” para retomar a ofensiva americana contra os
chineses, mas as coisas inverteram-se e é um Trump na defensiva e atolado nos
seus próprios erros de gestão pandémica que retoma esse argumento em condições
bastante desfavoráveis. Entretanto, nesse poço de imprevisibilidade e de
comportamentos erráticos, soube-se esta semana através do livro de John Bolton
(uma outra peça de almanaque) que Trump terá implorado a ajuda do líder chinês
para ganhar as próximas eleições (não imagino sinceramente como).
Não tem sido fácil às autoridades europeias mudar o seu discurso
relativamente à influência chinesa, primeiro pela insuficiência da sua política
externa, segundo devido à bonomia das interpretações passadas. Todos sabemos
que a posição chinesa em relação à pandemia COVID está longe de ser clara,
embora me distancie de teses cabalistas que obviamente Trump cavalgou a toda a
brida. Mas a verdade é que mesmo o posicionamento chinês na OMS é pouco
transparente e daí ter sido por essa vertente que começou a mudar a postura da
União. Mas o domínio em que pode registar-se uma mudança mais significativa é a
do posicionamento europeu face aos subsídios estatais. A Comissão Europeia acaba
publicar em 17 de junho o Livro Branco “WHITE
PAPER on levelling the playing field as regards foreign subsidies” (link aqui) que
pretende fundamentar o início de um posicionamento mais agressivo relativamente
às características muito particulares da indústria chinesa, permitindo pelo
menos clarificar o posicionamento da UE nas negociações que continuarão a
desenvolver-se no quadro da Organização Mundial de Comércio.
O que parece fundamental assegurar é que o posicionamento da União face à
China não seja influenciado pelo errático pingue-pongue entre Trump e as
autoridades chinesas. Nesse caso, a posição europeia iria sempre a reboque e se
a própria China entrar nas negociações em função do posicionamento do próprio
Trump as condições estão criadas para uma negociação ainda mais errática.
Admitindo que os tempos atuais induzirão da parte dos chineses uma maior
relutância em colocar passadeiras vermelhas às empresas europeias, o mais
provável será cercear o acesso do capital chinês à estrutura produtiva
europeia. Portugal que se cuide pois como dizia na introdução ter entregue
ativos como a EDP e a REN a empresas públicas chinesas pode-nos colocar sérias
dificuldades. Recordemos que, nessa altura, a TROIKA vidrada que estava na
necessidade de privatizações como meio de gerar receita pública terá olhado com
indiferença o facto de ser o capital chinês a perfilar-se. Ironias da história.
Sem comentários:
Enviar um comentário