segunda-feira, 22 de junho de 2020

A UNIÃO EUROPEIA FACE À CHINA


(Já se compreendeu que com pandemia ou sem ela estamos em tempos em que a geopolítica e a política económica regressam em força à gestão dos equilíbrios mundiais. Com as dificuldades conhecidas, a União Europeia procura transformar o seu posicionamento em algo menos reativo e mais determinado. As relações com a sempre enigmática China estarão no centro desse reposicionamento. É tempo de maior realismo, evitar os contágios da imprevisibilidade e incompetência de Trump e de preparar os consumidores europeus para um outro olhar sobre o conteúdo em importações do seu consumo. E Portugal que se cuide pois ter ativos como a EDP e a REN nas mãos dos chineses coloca-nos numa posição bastante difícil neste assomo negocial das autoridades europeias.)

Temos de convir que a emergência da China na economia mundial foi fragmentadamente compreendida pelo ocidente desenvolvido e em particular pela União Europeia. Em tempos de bloqueios estruturais à procura mundial, as perspetivas de penetração no vasto mercado interno chinês e a possibilidade da deslocalização da produção, sabe-se lá por vezes com que parcerias, eram suficientemente atrativas para assistir com alguma bonomia à emergência do gigante chinês no mercado mundial. E, a verdade é que o ocidente nunca aprende, uma outra convicção se juntou a esta bonomia. A generalização da participação chinesa na economia de mercado mundial teria segundo alguns o efeito de lentamente ir gerando uma classe média chinesa de grandes proporções e com isso a progressiva transformação do regime económico chinês. Finalmente, um outro argumento que vale sobretudo para os países de mais baixos salários, a “invasão” pacífica chinesa de produtos de baixo preço permitia, embora à custa da destruição de algumas empresas consideradas ineficientes, continuar a reproduzir as condições de fraca remuneração do trabalho, construindo um modelo de consumo ajustado às condições de rendimento. Quantas vezes tenho ouvido a expressão proferida por gente operária ou trabalhando nos serviços mais básicos dizer que frequentam o “Corte Inglês dos produtos chineses”.

A ilusão da transformação do regime económico chinês por via do mercado mundial peca sobretudo por não ter percebido que, durante os tempos do Consenso de Washington em que as forças do mercado livre ditaram as suas leis internacionais para moldar os modelos económicos dos países, foram precisamente os países não canónicos como a China que melhores resultados de crescimento obtiveram. Pelo contrário, os continentes que mais alinharam com tais princípios perderam em toda a linha. O regime chinês mostrou que era possível através de um controlo férreo do capitalismo de Estado organizar as trocas, não evitando a corrupção é certo, mas preservando as principais instituições políticas e continuando a dominar a dinâmica evolutiva do comércio mundial.

A imprevisibilidade de Trump veio dinamitar a aparente posição de bonomia face ao avanço chinês, primeiro com base em fracamente sustentados argumentos de destruição de emprego americano pela invasão chinesa de produtos. O que economistas sérios como Katz e Autor mostraram foi que esse impacto no emprego e na desindustrialização americanos não podia ser ignorado, mas que era francamente inferior ao provocado pela evolução do progresso tecnológico. Aliás a combinação dos efeitos no emprego induzidos pelo progresso técnico e pela internacionalização não é coisa fácil de isolar, dando sempre origem a controversas interpretações sobre as técnicas mais adequadas para o conseguir. A pandemia “veio a calhar” para retomar a ofensiva americana contra os chineses, mas as coisas inverteram-se e é um Trump na defensiva e atolado nos seus próprios erros de gestão pandémica que retoma esse argumento em condições bastante desfavoráveis. Entretanto, nesse poço de imprevisibilidade e de comportamentos erráticos, soube-se esta semana através do livro de John Bolton (uma outra peça de almanaque) que Trump terá implorado a ajuda do líder chinês para ganhar as próximas eleições (não imagino sinceramente como).

Não tem sido fácil às autoridades europeias mudar o seu discurso relativamente à influência chinesa, primeiro pela insuficiência da sua política externa, segundo devido à bonomia das interpretações passadas. Todos sabemos que a posição chinesa em relação à pandemia COVID está longe de ser clara, embora me distancie de teses cabalistas que obviamente Trump cavalgou a toda a brida. Mas a verdade é que mesmo o posicionamento chinês na OMS é pouco transparente e daí ter sido por essa vertente que começou a mudar a postura da União. Mas o domínio em que pode registar-se uma mudança mais significativa é a do posicionamento europeu face aos subsídios estatais. A Comissão Europeia acaba publicar em 17 de junho  o Livro Branco “WHITE PAPER on levelling the playing field as regards foreign subsidies” (link aqui) que pretende fundamentar o início de um posicionamento mais agressivo relativamente às características muito particulares da indústria chinesa, permitindo pelo menos clarificar o posicionamento da UE nas negociações que continuarão a desenvolver-se no quadro da Organização Mundial de Comércio.

O que parece fundamental assegurar é que o posicionamento da União face à China não seja influenciado pelo errático pingue-pongue entre Trump e as autoridades chinesas. Nesse caso, a posição europeia iria sempre a reboque e se a própria China entrar nas negociações em função do posicionamento do próprio Trump as condições estão criadas para uma negociação ainda mais errática. Admitindo que os tempos atuais induzirão da parte dos chineses uma maior relutância em colocar passadeiras vermelhas às empresas europeias, o mais provável será cercear o acesso do capital chinês à estrutura produtiva europeia. Portugal que se cuide pois como dizia na introdução ter entregue ativos como a EDP e a REN a empresas públicas chinesas pode-nos colocar sérias dificuldades. Recordemos que, nessa altura, a TROIKA vidrada que estava na necessidade de privatizações como meio de gerar receita pública terá olhado com indiferença o facto de ser o capital chinês a perfilar-se. Ironias da história.

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