(A história da transição democrática em Espanha é um tema
fascinante que, em certa medida, antecipa alguns problemas da social-democracia
contemporânea e, por isso, merece ser sistematicamente revisitada. Como é óbvio
a reduzida distância temporal aos factos dificulta a tarefa e certamente que só
daqui alguns anos teremos historiadores suficientemente não comprometidos com o
que se passou. Até lá, resta-nos ir cruzando
testemunhos, mesmo reconhecendo que alguns deles estão contaminados por essa
proximidade e envolvimento. É o caso do estrondoso testemunho, mais
propriamente quatro testemunhos, do jornalista e atual diretor do El Español
Pedro J. Ramírez, em cuja audição me perdi por estes dias. E não tenho dúvidas
de os classificar como um verdadeiro furacão, o furacão Ramírez.)
O atual diretor do El Español é uma personagem incontornável da democracia
espanhola. E estou à vontade para o corroborar, pois uma personalidade que
convivia no padel com Aznar e privava com o casal Botella-Aznar e usa aquelas
camisas de colarinho branco, tecido de outra cor, gravatas berrantes e
suspensórios largos tem algo que afasta a minha empatia. Mas é inequívoco que a
sua trajetória pelo jornalismo espanhol desde a redação do ABC à direção do
Diário 16, depois à do El Mundo e atualmente no El Español é fulgurante, traz
consigo um rasto de independência e desassombro e de coragem política também, apesar
da convivência com Aznar que Ramírez se esforça em documentar que é melhor do
que parece, ou era.
Por isso, os quatro podcasts publicados recentemente (link aqui) em que Pedro J. Ramírez
organiza o seu testemunho sobre a transição democrática espanhola a partir do
jornalismo de ponta e de investigação que foi produzindo no Diário 16, no El Mundo
e agora no El Español é um documento precioso para a história futura de Espanha.
Não tenho dúvidas em classificar esses quatro podcasts como um verdadeiro
furacão, sobretudo com Filipe González no olho da tempestade e, como os
especialistas nos dizem, o olho da tempestade veicula sempre um micro-cosmos inconciliável
com a destruição que a mesma provoca. Nestes últimos dias, mergulhei nesses testemunhos
com a sensação desagradável que me iria confrontar com revelações negras sobre
uma personalidade política que me habituei a considerar senão modelo, pelo
menos reveladora de um tempo de construção notável da democracia espanhola,
Felipe González. E não me enganei. A tragédia do terrorismo de Estado que os
GAL representaram dirigido a outra forma de terrorismo não menos sanguinário
como o da ETA é testemunhada por Ramírez com uma evidência que até assusta. Mas
o testemunho não fica por aqui, integra o locupletamento monetário do então
Governador do Banco de Espanha Mariano Rubio, a instrumentalização do figurão Mário
Conde, escândalos financeiros de grandes empresas, as más companhias do ex-rei
Juan Carlos, a deriva do PP, as condições que levaram à queda de González, a influência do atentado sofrido
por Aznar na sua passagem ao poder e sabe-se lá o que mais.
Estou certo que o testemunho de Ramírez irá exercer uma influência enorme
na historiografia espanhola do futuro, até lá é escutá-lo com atenção, alguma
tristeza e sobretudo uma grande resistência ao desagradável. Pela minha parte e
apesar da deceção com alguma personalidades, senti-me mais sólido depois de o
ouvir.
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