domingo, 21 de junho de 2020

O FURACÃO RAMÍREZ



(A história da transição democrática em Espanha é um tema fascinante que, em certa medida, antecipa alguns problemas da social-democracia contemporânea e, por isso, merece ser sistematicamente revisitada. Como é óbvio a reduzida distância temporal aos factos dificulta a tarefa e certamente que só daqui alguns anos teremos historiadores suficientemente não comprometidos com o que se passou. Até lá, resta-nos ir cruzando testemunhos, mesmo reconhecendo que alguns deles estão contaminados por essa proximidade e envolvimento. É o caso do estrondoso testemunho, mais propriamente quatro testemunhos, do jornalista e atual diretor do El Español Pedro J. Ramírez, em cuja audição me perdi por estes dias. E não tenho dúvidas de os classificar como um verdadeiro furacão, o furacão Ramírez.)

O atual diretor do El Español é uma personagem incontornável da democracia espanhola. E estou à vontade para o corroborar, pois uma personalidade que convivia no padel com Aznar e privava com o casal Botella-Aznar e usa aquelas camisas de colarinho branco, tecido de outra cor, gravatas berrantes e suspensórios largos tem algo que afasta a minha empatia. Mas é inequívoco que a sua trajetória pelo jornalismo espanhol desde a redação do ABC à direção do Diário 16, depois à do El Mundo e atualmente no El Español é fulgurante, traz consigo um rasto de independência e desassombro e de coragem política também, apesar da convivência com Aznar que Ramírez se esforça em documentar que é melhor do que parece, ou era.

Por isso, os quatro podcasts publicados recentemente (link aqui)  em que Pedro J. Ramírez organiza o seu testemunho sobre a transição democrática espanhola a partir do jornalismo de ponta e de investigação que foi produzindo no Diário 16, no El Mundo e agora no El Español é um documento precioso para a história futura de Espanha. Não tenho dúvidas em classificar esses quatro podcasts como um verdadeiro furacão, sobretudo com Filipe González no olho da tempestade e, como os especialistas nos dizem, o olho da tempestade veicula sempre um micro-cosmos inconciliável com a destruição que a mesma provoca. Nestes últimos dias, mergulhei nesses testemunhos com a sensação desagradável que me iria confrontar com revelações negras sobre uma personalidade política que me habituei a considerar senão modelo, pelo menos reveladora de um tempo de construção notável da democracia espanhola, Felipe González. E não me enganei. A tragédia do terrorismo de Estado que os GAL representaram dirigido a outra forma de terrorismo não menos sanguinário como o da ETA é testemunhada por Ramírez com uma evidência que até assusta. Mas o testemunho não fica por aqui, integra o locupletamento monetário do então Governador do Banco de Espanha Mariano Rubio, a instrumentalização do figurão Mário Conde, escândalos financeiros de grandes empresas, as más companhias do ex-rei Juan Carlos, a deriva do PP, as condições que levaram à queda  de González, a influência do atentado sofrido por Aznar na sua passagem ao poder e sabe-se lá o que mais.

Estou certo que o testemunho de Ramírez irá exercer uma influência enorme na historiografia espanhola do futuro, até lá é escutá-lo com atenção, alguma tristeza e sobretudo uma grande resistência ao desagradável. Pela minha parte e apesar da deceção com alguma personalidades, senti-me mais sólido depois de o ouvir.

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