quarta-feira, 28 de outubro de 2020

DO R AO K E ASSIM VAMOS …

 


(Em quase oito meses de pandemia, todos percebemos que a maneira como interpretamos as evidências que a incidência nos proporciona vai variando, esperando nós que essas variações traduzam uma melhor compreensão do problema e não apenas o fervilhar dos palpites e das intuições. Num artigo que recomendo, o El País (link aqui) ajuda-me a sistematizar pensamento sobre a matéria ...)

A memória tende, por vezes, a ser curta mas com um pequeno esforço será fácil compreender que as recomendações que temos recebido das autoridades sanitárias nacionais, europeias e internacionais em geral têm-nos conduzido a uma significativa alteração dos nossos comportamentos e práticas de segurança.

Na fase inicial, recordam-se que os cuidados no contacto com as superfícies eram centrais nas nossas preocupações. A maneira como interpretámos as recomendações conduzia-nos a práticas por vezes bizarras. Não tenho qualquer pudor, por exemplo, em referir que em alguns fins de semana, aqueles que correspondiam a um agudizar das mensagens públicas, só lia o Expresso depois de o colocar 15 a 20 minutos no forno a 150º, transformando notícias fresquinhas em notícias com alguma temperatura (algumas delas já suficientemente quentes), enquanto saboreava o pão fresco e macio. Também percebi que havia reações ainda mais exageradas, como por exemplo a de ler o mesmo Expresso apenas uma semana depois …

Há dias, sempre as evidências e a sua interpretação, fomos confrontados com pronunciamentos de autoridades sanitárias e de peritos localizados no círculo de maior proximidade a tais instituições que reduziam o risco de contágio por via do contacto com superfícies potencialmente contaminadas a margens mínimas. Curiosamente, no último fim de semana e antes de ter sistematizado esta reflexão voltei a colocar o Expresso no forno, depois de uma longa interrupção de tal prática bizarra. Enquanto a interpretação das evidências ia mudando, não deixámos de nos aperceber que a recomendação inicial tinha gerado comportamentos de precaução em muitas atividades comerciais, com a limpeza sistemática e mais rigorosa de algumas superfícies, embora nem sempre como mandam os cânones com papel de limpeza e antes com o horroroso pano desgraçadamente utilizado em muitas lojas, que conspurca mais do que limpa. Ou seja, o princípio da precaução no desconhecido e na indeterminação deve estar sempre presente.

Podíamos falar também das diferenças só tardiamente identificadas e divulgadas de transmissão por via das gotículas (vulgo perdigotos) e dos aerossóis, com notórias implicações no uso generalizado de máscaras, nas condições de arejamento, na diferença entre estar em espaços fechados e em espaços abertos e noutras práticas de segurança. Aqui, curiosamente, a inércia de resposta das autoridades nacionais e internacionais foi mais forte, mas como têm reparado, à medida que a situação global se degrada o princípio da precaução que deveria ter inspirado o planeamento é substituído pela reatividade de mobilização em massa de uma grande quantidade de restrições.

Nos tempos mais recentes e à medida que a investigação científica trabalha mais estruturadamente as evidências, quando as autoridades nacionais, a preparam e disponibilizam atempadamente, vão surgindo novas perspetivas, proporcionando às autoridades sanitárias e aos governos novas condições de abordagem. Este vai ser, em meu entender, o modelo que prevalecerá durante ainda muito tempo, diria muito próximo do “trial and error”, até que o conhecimento entre pares se torne consistente e possa com risco mínimo ser disseminado, segundo a lógica que conhecemos da inovação-difusão e criação de protocolos mais robustos.

O El País tem dedicado algum investimento à rastreabilidade do conhecimento científico que vai emergindo e tenho-o utilizado como suporte da minha própria orientação, que é fundamentalmente para encontrar a sanidade mental necessária à resiliência face à indeterminação e incerteza que nos cercam.

O artigo a que me refiro centra-se numa frente de investigação que tem ganho alguma força e que consiste em aprofundar conhecimento sobre os modelos de contágio e disseminação. Há alguns meses, os não epidemiologistas e os não especialistas em saúde pública, como eu, andavam às voltas com o famoso R, tentando perceber como era calculado, ainda que entendendo o seu papel. Esse famoso indicador não desapareceu, como é óbvio, e ainda nestes dias com o recrudescimento da pandemia, voltou a aparecer nos nossos radares. Mas eis que surge o K, outro quebra-cabeças para não especialistas e lá vamos nós.

Há um número que tem circulado não propriamente como uma evidência já perfeitamente consolidada, mas já com poder informativo sugestivo: 10% a 20% dos contágios parecem ser responsáveis por 80% dos casos de infeção. Como os responsáveis pelo artigo do El País o referem, os contagiadores não são homogéneos e parece que os super-contagiadores existem. Ora o tão badalado R opera como se houvesse um padrão homogéneo e típico de contágio. Toda a evidência disponível parece contrariar essa possibilidade. Todos temos ouvido falar de ocorrências como os coros, as reuniões mal ventiladas ou de algum indivíduo super-influente no contágio. O K é um fator de dispersão que nos diz que quanto menor ele é maior a probabilidade do contágio se processar por conjuntos (clusters) de pessoas (nota pessoal: os clusters perseguem-me por toda a parte!).

O problema é sempre o mesmo. As ideias surgem mas daí a aplicarem-se imediatamente na abordagem concreta aos casos concretos vai alguma distância. Esta ideia tem implicações em matéria de estratégia de combate à pandemia. Os autores do artigo citam o caso do Japão que evoluiu para o tratamento pormenorizado dos clusters identificados. A Coreia do Sul parece ter evoluído nesse mesmo sentido, com a evidência de que 66% dos casos correspondem a um cluster identificado, 10% são contágios individuais e o restante não teve identificação. Ou seja, nem todos os países investiram conscientemente no rastreio como investimento de elevado retorno. Será que a ideia de cluster sugere um método de rastreio diferente, não para a frente de um caso de infeção, mas para trás procurando as raízes do contágio agora identificado. Se os números do Japão estiverem corretos e se constituíssem eventualmente o padrão, claro que seria mais eficaz rastrear para trás, indo à procura de uma eventual situação de super-contágio do que rastrear para a frente em que a probabilidade de não ter contagiado ninguém seria elevada.

Um exemplo:

A mulher, B homem e C criança, família com A e B médicos, surgem contaminados e positivos. A, uns dias antes de expressão sintomática, contactou M (mãe), P (pai), I (irmão) e T (tia). M, P, I e T são orientados para quarentena de 14 dias e 48 horas antes dela terminar são testados, neste caso concreto todos negativos. Pergunta-se: houve rastreio de onde o contágio terá sido produzido?

A questão não é fácil de equacionar. Não há evidência de que os números do Japão ou da Coreia do Sul correspondam a um padrão. E, como sabemos, o momento em que alguém, posteriormente infetado, contacta com outros não é indiferente à probabilidade de contágio efetivo. Quanto mais ele acontece próximo da expressão sintomática mais aumenta a probabilidade de o contágio acontecer, o que convida a que o rastreio para a frente não seja abandonado.

Incertezas e indeterminação que vão obviamente continuar até que a investigação a partir das evidências que se vão libertando se torne mais consistente.

Mas que o estudo das condições em que certos surtos emergem contém um enorme potencial de intervenção através de processos preventivos e de orientação para a orientação do comportamento individual, movimentando-se em função de riscos baixos, parece inquestionável.

Nota final:

O artigo do El País remete para investigações concretas realizadas em ambiente de “open research” que podem ser facilmente consultadas. Um bom serviço público.

Sem comentários:

Enviar um comentário